A professora
emérita da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), vinculada ao
Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas do Centro de Educação e
Ciências, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva usa a saudação para explicar a
importância da educação étnico-racial e da Lei
10.639/2003, que estabelece que os conteúdos referentes à história e
cultura afro-brasileira sejam ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, ou seja, em todas as etapas de ensino, da educação infantil ao ensino
médio.
Silva foi,
em 2004, a relatora, no Conselho Nacional de Educação (CNE), do parecer que
definiu as diretrizes curriculares para
a implementação da lei em todo o país, em escolas públicas e particulares. Para
a professora, a importância da educação étnico-racial nas escolas é que as
diferentes culturas sejam valorizadas e respeitadas. “Eu costumo dizer que
educação étnico-racial se dá no convívio. Por exemplo, quando eu passo por uma
pessoa. Se eu passo e viro o rosto, não estou reconhecendo a sua presença a sua
humanidade”, diz, explicando a saudação zulu.
Segundo ela,
esse reconhecimento só vem com o conhecimento: “Valorizar e respeitar, exige
que se conheça e que seja se tenha respeito pelas distintas maneiras de ser,
porque isso vai permitir que se intensifique um diálogo para que se decida
junto para que nação estamos trabalhando, para que nação brasileira estamos
contribuindo com nosso estudo, com nossa participação na sociedade e com o
nosso convívio diário”.
A luta por
conhecimento da cultura afro-brasileira e africana, que levou, entre outras
mudanças, a aprovação da Lei 10.639/2003, é uma luta de muitos anos, do
movimento negro, dos movimentos sociais e de muitas pessoas. “O que aconteceu
durante muitos anos é que se reconhecia como a história mais valiosa do povo
brasileiro a que tivesse sido construída pelos europeus. Então, essa que foi
ensinada para nós nas escolas e o que sabíamos sobre histórias dos nossos povos
negros, indígenas, vinham por meio das famílias das associações”, explica
Silva.
A lei, que
mudou a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), a principal lei da educação no Brasil, veio
como objetivo de mudar esse cenário, de incluir nas salas de aula, os
conhecimentos, a cultura e a história de grande parte da população
brasileira.
Ainda hoje,
no entanto, 21 anos após a aprovação, a lei ainda não é cumprida. Uma pesquisa
divulgada no ano passado mostrou que 71% das secretarias municipais de
Educação não têm ações consistentes para atender a legislação. Outro
estudo divulgado este ano mostra que cerca de 90% das turmas de educação
de creche e pré-escola ignoram temas raciais. Silva é taxativa: “Eu
começaria dizendo que não é que conseguem. É que não querem implementar”.
Silva conta que no momento que o CNE se manifestou, ele considerou as diferentes experiências que já existiam no país, experiências que vinham sendo construídas pelos movimentos sociais e também por professores. Há, portanto, indicações de caminhos. O próprio parecer do CNE estabelece que seja feito um mapeamento e divulgação de experiências pedagógicas de escolas.
Combate ao racismo
Segundo a
coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa, Edneia Gonçalves, o grande
empecilho para a aplicação da lei é o próprio racismo. “Tem uma questão de
fundo. Essa lei é uma ação afirmativa e é uma ação que reafirma o racismo no
Brasil. Então, a dificuldade dessa aplicação tem a ver justamente com o
racismo, que ensina que isso não é importante”, diz.
A
implementação exige um esforço para a formação de professores, produção de
materiais didáticos e uma reorganização da própria escola. Mas, mais uma
mudança é necessária, segundo Gonçalves, assumir que o racismo existe.
“A mudança que acontece antes de chegar à sala de
aula é uma mudança que a gente considera como muito mais profunda que é efeito
das manifestações institucionais do Brasil, considerando o racismo
institucional no ambiente escolar, na política escolar, no sistema educacional
brasileiro. Tem muitas coisas que precisamos discutir, mas para chegar na sala
de aula, primeiro, tem que passar por essa discussão, enfrentar o mito da
democracia racial, que ainda é muito forte nas escolas”, defende.
Gonçalves ressalta ainda que não se trata de uma simples lei, mas de uma lei que modificou a LDB, incluindo na principal lei da educação o ensino étnico-racial. Além da lei, estão as diretrizes definidas pelo CNE. Nelas, estão mais detalhes de como essa lei deve ser implementada e que tipo de atividades e conteúdos devem ser trabalhados nas salas de aula. “Se a legislação não foi aplicada até agora, imagina as diretrizes. É preciso estudar diretrizes e pensar aplicações para todas as áreas do conhecimento e possiblidades de articulação e diálogo com a comunidade escolar. É um desafio muito grande”, diz.
Postura crítica
Segundo a
professora, escritora e doutoranda da Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo (USP), Sheila Perina de Souza, o país avançou em um quesito
fundamental para a aplicação da lei, que é a produção de materiais didáticos.
“Também por conta das políticas afirmativas, cada vez mais a gente tem
pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento produzindo materiais,
professores que também se colocam nesse lugar de produzir material para tratar
da história e da cultura negra. Essa barreira dos materiais didáticos temos
avançado bastante, ainda é algo que falta, mas é algo que tem evoluído”,
diz.
Mesmo assim, é necessário um olhar
crítico até mesmo dos próprios professores. De acordo com Souza, o estudo do
Continente Africano ainda permanece como um “puxadinho” nos livros didáticos,
um conteúdo que acaba sendo deixado para o final e que às vezes não é nem mesmo
concluído.
“É
fundamental que a gente também como professoras e professores revisitemos os
livros didáticos com uma postura crítica, com postura de pesquisador,
questionando se as informações que o livro traz são informações que estão de
acordo com a educação antirracista que estamos construindo, porque embora
tenhamos avançado ainda há muito trabalho a fazer”, diz.
Outro grande
desafio, segundo Souza é construir um currículo que se proponha a discutir a
presença negra não apenas nas ciências humanas, mas que seja transversal,
abrangendo todas as disciplinas do currículo.
Por isso,
para ela, o foco deve ser no Projeto Político Pedagógico (PPP), que é um
documento elaborado anualmente que reúne os objetivos, metas e diretrizes de
cada escola. “É um momento no qual se faz um pacto da escola com uma educação
antirracista, uma educação para as relações étnico-raciais. É de fundamental
importância que esse compromisso também apareça no PPP, que é um documento que
é construído pelos professores, pelas famílias, um documento da comunidade
escolar”, explica.
Fonte:
https://www.geledes.org.br/implementar-a-lei-10-639-e-garantir-o-direito-ao-acesso-a-historia/.
Acesso em 15/01/2024.
0 Comentários