Essa era uma percepção
milimetricamente construída para garantir que não existisse nenhum tipo de
condenação moral às atrocidades que foram feitas na África em nome de ideias
bem determinadas de civilização e de progresso defendidas por uma Europa
branca. Não ter história significava suspender da condição humana os milhares
de homens e mulheres africanos, e assim seguir sem muita culpa num projeto
abertamente colonial.
Era por não terem
história que jovens foram sistematicamente amputados pelos homens que agiam em
nome do rei belga Leopoldo 2º. Era por não terem
história, que os países europeus se reuniram e decidiram fatiar o continente
africano, definindo qual porção seria colonizada por cada país. Era por não
terem história, que os africanos da Namíbia foram testados e
descartados como ratos de laboratório pelo governo alemão, naqueles que foram
os primeiros campos de concentração do mundo.
E a ideia mentirosa da
África sem história atravessou o Atlântico e chegou aqui, em terras
brasileiras, se atualizando ao longo do tempo. Em parte, a escravização de
milhares de africanos estava respaldada nessa condição "quase
humana" que lhes era atribuída. Era justamente por não serem assim,
tão humanos, que os feitos e vidas dos africanos e de seus descendentes foram
silenciados.
Acontece que essa
condição de "gente sem história" se manteve mesmo depois que a
escravidão foi abolida. Quando muito, os africanos interessavam pelo tempero
que deram às comidas brasileiras, pelo ritmo de seus tambores ou pelo afeto que
transformara para sempre o português aqui falado.
Castelo
de privilégios
Por muito tempo seguimos
fazendo uma história do Brasil na qual não havia espaço para as histórias de
africanos nem da África. Uma história sempre tensionada pelos escritos e ações
de homens e mulheres negros, descendentes diretos dos africanos e africanas que
construíram boa parte do que hoje chamamos de Brasil. Mas, para manter o
castelo de privilégios da supremacia branca brasileira, esse tensionamento era
(e continua sendo) classificado como "ações militantes", que em tese
estavam desprovidas de respaldo científico.
Mas junto com a
militância negra, é preciso reconhecer que existem homens brancos que conseguem
enxergar esse castelo de privilégios e se afastar dele. Alberto da Costa e
Silva foi um deles. Um homem que pensava e escrevia uma história antirracista, muito antes desse termo
entrar em voga, fazendo um bom uso do seu lugar no mundo.
Por um lado, Alberto da
Costa e Silva teve uma vida que se assemelha a de outros importantes
intelectuais brasileiros oriundos de uma determinada classe social e pertença
racial. Estudou em boas escolas, formou-se diplomata, viajou o mundo
representando o Estado brasileiro, manteve a tradição paterna e também se fez
poeta, além de ensaísta e memorialista, ganhando prêmios e reconhecimento
nacional e internacional, tendo sido não só integrante, como presidente da
Academia Brasileira de Letras.
Mas é como historiador
que Alberto da Costa e Silva se diferencia do seu lugar de origem, lançando um
olhar muito mais plural e complexo para o presente e para o passado. Os anos em
que foi diplomata na Nigéria e no Benin devem ter sido profundamente
transformadores para que ele conhecesse com mais profundidade a história desses
países, bem como passasse a ver o Brasil com outros olhos, reconhecendo como
nós somos diretamente devedores dessas duas nações africanas.
E generoso como poucos,
Alberto da Costa e Silva compartilhou conosco um pouco das Áfricas que ele
conheceu por experiência própria, mas também por histórias escritas e contadas
por terceiros.
Um dos
primeiros africanistas do Brasil
No Brasil, a escrita de
Alberto da Costa e Silva o transformou em um dos primeiros africanistas do
país. E mais importante do que o título, é o que ele representa. Ao contrário
do que foi dito por séculos, ele escrevia (com todo o rigor científico) que
sim, a África tinha histórias. E que elas eram tão plurais quanto imensas.
O tamanho dessas
histórias não cabia naquele século 15 e no encontro com os portugueses. As
Áfricas começavam muito antes disso. Na verdade, a África começava no exato
momento em que nós, seres humanos, também começamos. E no belo livro A
Enxada e a Lança, Alberto da Costa e Silva nos brindou com a diversidade
que constituí o continente africano, descrevendo paisagens, reconhecendo a
importância dos rios, analisando as muitas formas que as sociedades africanas
se organizaram, nos explicando a importância da tradição oral, da
impossibilidade em separar a experiência religiosa da vida mundana quando o
sujeito da frase são homens e mulheres africanos.
Mas ele também era um
Silva. Sabia do valor de conhecer as histórias da África, mas tinha plena
certeza que, no Brasil, esse valor era dobrado. E sua atuação como historiador
revelou as violências e crueldades que organizaram a escravidão
brasileira, sem nunca perder de vista que o Brasil que conhecemos hoje só
existe porque foi construído por africanos de diferentes origens, portadores de
múltiplos saberes e culturas. Boa parte de seus livros são embarcações que
fizeram o caminho contrário dos navios negreiros, restituindo aquilo que a
escravidão e o projeto racista tentou retirar da África: suas histórias.
Pela sua gentileza e
generosidade, quero crer que além de nos ensinar tanto, ele também teve uma boa
vida.
Aqui, resta agradecer e
reverenciar esse bom e sábio aliado.
Alberto da Costa e Silva
morreu no dia 26 de novembro de 2023, aos 92 anos.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/um-silva-do-brasil-e-das-%C3%A1fricas-alberto-da-costa-e-silva/a-67567665.
Acesso em 29/11/2023.
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