É
inegável, além de visível que, desde 2018 com a ascensão do bolsonarismo, a
situação de brasileiras e brasileiros negras/os e periféricos fora marcada por
retrocessos em todos os aspectos. As estatísticas revelaram que fomos nós os
mais impactados pelo desemprego, informalidade, precarização do trabalho e
desalento. Perdemos renda, sofremos com a insegurança alimentar e com a
letalidade da covid-19, além da violência em todas as suas modalidades, que tem
no racismo sua causa determinante.
Lembro-me
de como uma manchete da revista Carta Capital, publicada em agosto de 2020,
fatídico ano pandêmico, mexeu com minha racionalidade em meio ao processo
doloroso de pesquisa acadêmica para minha titulação como mestra. A matéria “Terceirização
tem ‘cara’: é preta e feminina” mostrou os dados acerca da
condição de mulheres inseridas no trabalho doméstico e de cuidados, negras em
sua maioria, escancarava a vulnerabilidade das nossas irmãs, além de trazer a
resposta a uma pergunta que muitos fizeram: porque numa casa em que patrões
contraíram covid-19 numa viagem internacional, a vítima letal foi a empregada?
A primeira vítima da covid neste país, Cleonice Gonçalves, era uma mulher negra
de 57 anos, empregada doméstica desde os 13 anos, de quem os patrões omitiram a
informação do contágio do vírus para que ela seguisse em sua rotina de trabalho
mesmo num contexto de isolamento social que não lhe permitira ficar em sua casa
diante da necessidade premente de ter sustento. Dessa mesma forma, Mirtes
perdeu seu filho, Miguel, de 5 anos de idade, deixado sozinho no elevador pela
patroa impaciente com seu choro, um crime motivado pela articulação do racismo
e elitismo, visto ter sido uma negligência com uma criança negra, como se sua
vida tivesse menor valor.
Prosseguir
com a escrita da dissertação parecia impossível para mim. Foram semanas sem
conseguir ir além do que conseguira produzir até a qualificação. Em alguns
momentos do dia vinha um choro incontido e perguntas fervilhavam na cabeça:
produção acadêmica para que? Para quem? Como sonegar o que sinto neste escrito
que demanda cientificidade e uma suposta imparcialidade? Falar de nós numa
pesquisa acadêmica suprimindo nossas subjetividades?
Mulheres
negras também lideraram a estatística da violência doméstica e do feminicídio.
Durante a pandemia, a cada oito minutos uma mulher sofreu violência, sendo mais
da metade negras. Quando não são as vítimas, são as que choram a morte dos seus
quase sempre pelo braço armado do estado em abordagens truculentas nas
comunidades que, segundo a visão de quem ocupa o mais alto cargo da República,
“só tem bandidos” corroborando com o racismo exalado pelas instituições e
engrossando a estatística que atesta estarmos diante de um genocídio de jovens
pretos.
Diante de tantas mazelas que atravessaram nossos corpos, afetaram nossa saúde
mental, nunca este governo, bem como a parcela da sociedade por ele
representada, se mostrou minimamente empático, atento, humano para conosco. Ao
contrário. O modus operandi incluía relativizar,
naturalizar e tripudiar das nossas dores sem qualquer dispositivo ético, a
exemplo da ocasião em que o Presidente da República parabenizou publicamente
agentes da Segurança Pública depois de uma das maiores chacinas da história do
Rio de Janeiro, na favela do Jacarezinho, com 29 pessoas mortas, lidas por
ele e seus asseclas como “elementos ligados ao tráfico”. Não lhes passa pela
cabeça que famílias choram os seus. Famílias pretas de lares monoparentais
sustentados por mulheres pretas, como constam as estatísticas.
São
apenas alguns exemplos do quanto, nos últimos 4 anos, o Estado brasileiro
assumiu a face cruel de juiz que arbitra sobre vida e morte. A necropolítica
teve neste governo uma operacionalidade inédita e exitosa cabendo a metáfora de
gigantesca máquina de moer os que nascem com o alvo nas costas e, em se
tratando de uma sociedade racializada, sabemos quais corpos carregam alvos.
Kathlen Romeu, 24 anos, grávida, não pôde viver para realizar seus sonhos. Era
meados de 2021.
De
lá até aqui, mais do mesmo. Não suportávamos mais.
Como
não sentir alívio? Numa eleição marcada pelo jogo rasteiro das fake News e da
desinformação, pelo uso da máquina do Estado para comprar votos à luz do dia,
também pelo assédio eleitoral praticado por empresários e, ainda, pelo
terrorismo religioso que transformou igrejas das várias denominações cristãs em
palanques de manifestação efusiva de apoio ao candidato à reeleição, além da
escalada da violência política. Vivemos sob tensão até no dia do pleito, quando
manobras para dificultar o deslocamento de cidadãos do Nordeste foram
realizadas num flagrante crime eleitoral. Tudo isso para evitar que pudéssemos
libertar da garganta o grito e do peito a esperança num país que olhe para a
base da sociedade com humanidade.
Na
base estamos nós, mulheres negras, ainda na condição das que sofrem asfixia
social, vulneráveis, mais pobres, sob perdas e invisibilizadas, como
sobreviventes dos filmes de catástrofes que precisam recomeçar em meio a
destroços. Mas aqui também está a potência da transformação, basta que
depositem em nós, institucional e legalmente, credibilidade, incentivo,
oportunidades e estaremos prontas para, como figuras centrais, reconstruirmos
este país, que queremos mais afetuoso e acolhedor. É nesta mudança que
acreditamos. Como Pretagonistas.
Josi
Souza- Professora ( Sec-Ba), Mestra em Educação ( PPGE-UEFS), feminista
antirracista.
Fonte: https://www.geledes.org.br/fim-do-pesadelo-mulheres-negras-e-as-eleicoes-presidenciais/.
Acesso em 27/11/2022.
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