Sua voz
ativa e atenta lhe conferiu relevância não apenas literária, mas também na
política. Em um momento em que metade da população brasileira se encontra em
insegurança alimentar e que a pauta social permeou o debate político das
eleições, Ecoa conta um pouco da história inspiradora desta escritora mineira,
nascida na cidade Sacramento em 14 de março de 1914.
Acusada de roubo
Carolina era
filha de uma família de lavradores, estudou apenas dois anos formalmente e sua
infância foi marcada por adaptações a novas cidades. A família viveu em três
municípios diferentes em seis anos, entre 1923 e 1929: Lajeado (MG), Franca
(SP) e Conquista (MG). Mais tarde retornaram para Sacramento, onde ela
permaneceu durante a adolescência.
O professor
mineiro Warley Matias de Souza, especialista em literatura, conta que Carolina
se mudou para São Paulo em 1937, após ter sido acusada injustamente, junto com
a sua mãe, de um roubo em Minas Gerais.
O episódio
acabou com a mãe dela presa até que a verdade fosse restabelecida e provada a
sua inocência. Essa passagem deixou marcas e foi o que motivou a sua mudança
para o estado de São Paulo.
Faxineira do doutor Zerbini
Na capital
paulista, ela foi trabalhar como empregada doméstica na casa de um cardiologista
renomado. Na residência de Euryclides de Jesus Zerbini, o primeiro médico da
América Latina e do Brasil a realizar um transplante de coração, passava as
suas folgas dentro da biblioteca que ele tinha saciando sua sede por leitura.
Carolina
deixou a casa após ficar grávida. Como não pôde cuidar do serviço pesado, teve
que se virar catando papéis e outros materiais recicláveis para sobreviver.
Em 1948, foi
para Comunidade do Canindé, na zona norte da cidade. “Foi lá que teve seus três
filhos. E passou a ter contato com a realidade difícil dos moradores da
comunidade. Começou a escrever e publicou seu primeiro texto no jornal O
Defensor, um poema que homenageava Getúlio Vargas”, destaca o professor.
A escritora
foi acumulando vários textos em seus diários esses trabalhos, segundo Souza,
que foram descobertos pelo jornalista Audálio Dantas, que a conheceu em 1958
quando foi fazer uma reportagem na comunidade.
Dantas se encantou com a postura de
Carolina, que estava ameaçando denunciar a depredação de brinquedos públicos
por parte da população no entorno de onde vivia, e procurou saber mais sobre a
sua vida.
Primeiro livro
O jornalista
teve acesso, então, aos diários nos quais ela relatava a realidade dos
moradores das comunidades, ficou encantado com a sua escrita e a ajudou a
publicar seu primeiro livro, em 1960. ‘Quarto de despejo: diário de uma
favelada’ fez sucesso e não demorou muito para que ela ganhasse notoriedade.
No mesmo
ano, foi homenageada pela Academia Paulista de Letras e pela Academia de Letras
da Faculdade de Direito de São Paulo. “Ela recebeu também o título honorífico
da Orden Caballero del Tornillo, na Argentina. Carolina seguiu escrevendo, mas
suas outras obras não alcançaram o mesmo sucesso da primeira”, diz Souza.
Trabalhos e legado
Segundo o
professor, a obra da escritora é baseada em memórias. É um importante
testemunho sobre a vida com reflexões sobre os problemas cotidianos. Souza
aponta como seus principais trabalhos o ‘Quarto de despejo’ (1960), ‘Casa de
alvenaria’ (1961), ‘Diário de Bitita’ (1986) e ‘Meu estranho diário’ (1996).
Em 1976, o
‘Quarto de despejo’ foi relançado pela editora Ediouro. A obra foi traduzida
para vários idiomas e alcançou cerca de 40 países. O livro continuou a ser
editado mesmo após a sua morte, em 1977, assim como as diversas homenagens que
recebeu.
Carolina
Maria de Jesus virou nome de rua e biblioteca, foi tema de livros de outros
autores e inúmeras dissertações e teses acadêmicas. Isso tudo garantiu a ela
destaque na literatura nacional. “Era uma pessoa que tinha gosto pela leitura,
foi o que fez a diferença na vida dela. Apesar da miséria, sempre achou
maneiras para não abandonar o hábito”, explica o professor.
Voz política
A fome
sempre aparece nos textos da escritora. Warley de Souza conta que o jornalista
Audálio Dantas, que apresentou Carolina para o mundo, chegou a comentar sobre
isso declarando, à época, que a fome aparecia nos textos com “uma frequência
irritante”.
É que
Carolina sentiu a fome na pele e levou seus desabafos e críticas aos governos
para dentro de suas narrativas, demonstrando profunda consciência social.
Criticou bastante o governo da época.
“EM UM TRECHO DE UMA DE SUAS PEÇAS, DISSE: ‘O QUE O
SENHOR JUSCELINO (KUBITSCHEK) TEM DE APROVEITÁVEL É A VOZ. PARECE UM SABIÁ E A
SUA VOZ É AGRADÁVEL AOS OUVIDOS. E AGORA, O SABIÁ ESTÁ RESIDINDO NA GAIOLA DE
OURO QUE É O CATETE. CUIDADO SABIÁ, PARA NÃO PERDER ESTA GAIOLA, PORQUE OS
GATOS QUANDO ESTÃO COM FOME CONTEMPLAM AS AVES NAS GAIOLAS. E OS FAVELADOS SÃO
OS GATOS. TÊM FOME’. OS APONTAMENTOS PARA AS RESPONSABILIDADES DO GOVERNO
APARECIAM COM CERTA FREQUÊNCIA”
Warley de Souza, especialista em
literatura
A escritora
responsabiliza o governo também pela pobreza e criticava a postura eleitoreira
de alguns políticos, que só visitavam a comunidade em que vivia em tempo de
eleição, com único objetivo de angariar votos. Criticava igualmente os que
tinham o contato constante com os problemas dos pobres, mas que desapareciam
após serem eleitos.
Carolina
Maria de Jesus não se casou. Levou a vida com toda a independência, fazendo da
literatura seu lugar de prazer e indignação. E assim viveu até 1977. A
escritora morreu no dia 13 de fevereiro, no bairro de Parelheiros, da cidade de
São Paulo.
Fonte: https://www.geledes.org.br/carolina-maria-de-jesus-quem-foi-a-escritora-que-denunciou-a-fome-no-pais/.
Acesso em 07/11/2022.
0 Comentários