Até então, as missas eram
celebradas em latim, com o padre de costas para os fiéis. Só a partir dali é
que os rituais passaram a ser na língua local, com o padre virado para o povo,
como se todos estivessem ao redor de uma mesma mesa — no caso, o altar.
Mas esta foi apenas uma das mudanças proporcionadas
pelo encontro, que buscou alterar significativamente a mentalidade da
instituição religiosa milenar.
"Ao promover um diálogo
intra e extra-muros, o concílio significou a passagem da Igreja Católica, então
medieval, para a modernidade", define o teólogo, historiador e filósofo
Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Para o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer
Junior, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o
encontro foi importante "porque abriu a Igreja para dialogar com o mundo e
sair das masmorras onde havia se encerrado".
"O Vaticano 2º foi orientado pela palavra
'atualização'. Atualização diante dos desafios do mundo, com as mudanças, com o
avanço da ciência e da tecnologia, com a mudança das questões morais e com as
questões sociais exigindo respostas, no clima da guerra fria", destaca o
vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre em Roma. Ele ressalta
que fazia "muito tempo" que a Igreja não fazia uma reforma profunda e
o concílio foi a oportunidade de revisar paradigmas.
Não foi algo simples, nem de uma
hora para outra, é claro. Na história da igreja, são chamados de concílios os
encontros convocados pelo papa para deliberar sobre o futuro da organização, a
partir de paradigmas de fé, costumes e doutrinas. Reúnem a cúpula hierárquica
da Igreja e atravessam intensos debates.
Fiéis
O Vaticano 2º foi realizado por meio de quatro sessões
— de outubro de 1962 a dezembro de 1965. No total, participaram 3.060 membros
com voz e voto, entre eles dois papas — João 23 (1881-1963), que convocou o
sínodo, e seu sucessor, Paulo 6º (1897-1978) —, 129 superiores gerais, 12
patriarcas, dois vigários patriarcais, 122 cardeais, 398 arcebispos, 1.980
bispos, 91 prelados, entre outros cargos eclesiásticos.
Dentre todos os participantes do
encontro, há apenas seis vivos, nenhum brasileiro. "O Brasil enviou ao
encontro 221 bispos e prelados, além de nove peritos e um leigo", pontua
Altemeyer Junior.
No total, o concílio resultou na
publicação de quatro constituições, nove decretos e três declarações.
De forma geral, é possível
delimitar em quatro eixos o impacto do evento.
"A nova liturgia em línguas
vernáculas, a retomada da palavra de Deus como central na fé católica, a ação
em favor da transformação do mundo, e a nova consciência da Igreja como
instrumento de diálogo com as realidades do mundo e as outras religiões",
descreve Altemeyer.
Em outras palavras, o catolicismo
pós-concílio se tornou mais próximos dos fiéis, mais profundo biblicamente,
mais perto dos pobres e mais aberto às outras manifestações religiosas.
"É como se a Igreja Católica
estivesse se reconciliando com a modernidade", comenta Moraes. "Após
o Vaticano 2º, podemos falar em renovação, em reflorescimento do
catolicismo."
"Demorou para isso
acontecer? Demorou. Mas é preciso lembrar que a Igreja Católica é um
transatlântico: virar esse negócio é muito difícil, manobrar é muito
difícil", acrescenta o teólogo.
Opção pelos pobres
Ao longo de três anos, os padres
conciliares reafirmaram que a Igreja precisava estar junto aos pobres. "A
Igreja reafirmou a opção preferencial pelos mais pobres, e isso teve um eco
enorme, por exemplo, na teologia da América Latina, a teologia da
libertação", comenta Moraes.
Isso se tornou mais simbólico
ainda no chamado Pacto das Catacumbas — oficialmente Pacto da Igreja Servidora
e Pobre —, um documento produzido e assinado por 42 participantes do concílio.
O pacto recebeu esse nome porque
foi assinado em um encontro realizado nas catacumbas de Santa Domitila, em
Roma. Depois, mais de 500 religiosos também se tornaram signatários do
documento.
Entre os pontos do texto, há o
compromisso em dar "tudo o que for necessário ao serviço apostólico e
pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e
subdesenvolvidos", a recusa a privilégios e títulos e o ensejo de colocar
"tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos
serviços públicos decidam e ponham em prática as leis."
"A Igreja Católica, ao
entrar de fato na modernidade, ela faz uma opção pelos pobres combatendo as
estruturas geradoras de injustiça social", analisa Moraes.
Com 13 pontos, o texto foi
apresentado no dia 16 de novembro de 1965 e contou com a participação de cinco
brasileiros: o então arcebispo de Vitória, João Mota e Albuquerque (1909-1984);
o bispo de Afogados de Ingazeira, Francisco de Mesquita Filho (1924-2006); o
bispo auxiliar do Rio de Janeiro, José Castro Pinto (1914-2007); o bispo de
Botucatu, Henrique Golland Trindade (1897-1974); e o então bispo de Crateús,
Antônio Fragoso (1920-2006).
O acordo teve como um dos
mentores principais o arcebispo Helder Câmara (1909-1999), um dos fundadores da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e já conhecido como defensor
dos direitos humanos. De acordo com pesquisa de Altemeyer, Câmara não esteve
presencialmente no evento porque no mesmo dia precisou participar de uma
reunião, junto à cúpula do Vaticano, relacionada ao concílio.
Comunidade
e ecumenismo
Outro ponto relevante do concílio
foi a melhora da comunicação com os próprios fiéis. Não só pelo fato de que as
missas deixaram de ser em latim e com o padre de costas, mas também porque a
liturgia passou a prever uma participação mais ativa da comunidade.
"E os leigos passaram a ser
valorizados, com uma participação maior dentro das estruturas da igreja. O
Vaticano passa a olhar para os leigos de uma forma diferente", diz Moraes.
Eram questões, contextualiza ele,
que estavam represadas há mais de um século, com um anseio cada vez maior de
participação. "Havia um anseio de uma série de movimentos dentro da
Igreja, que já vinham acontecendo e deságuam no Vaticano 2º", pontua o
teólogo.
Segundo o especialista, esse
movimento leigo acabou trazendo sua peculiaridade para a própria aproximação da
Igreja com a comunidade. "Porque a Igreja é feita de pessoas, e esse
movimento refletiu as transformações e exigências socioculturais do período,
mostrando que a força do laicato é fundamental para a vida da igreja",
afirma. "E isso veio com muita força ao Brasil, com presença em todos os
segmentos da sociedade."
"O concílio entendeu que
hierarquia eclesiástica existe, mas precisa ser equilibrada com a participação
popular. A devoção popular precisa ser valorizada, mas ao mesmo tempo orientada.
Tudo isso foram coisas amadurecidas, que já vinham de antes do concílio, já
vinham sendo faladas e até praticadas em alguns grupos", argumenta o
vaticanista Domingues.
Moraes recorda ainda que o
concílio demarca um esforço de diálogo ecumênico, principalmente com outras
religiões cristãs, mas sem deixar de lado também outros credos.
"Era algo que alguns grupos
já praticavam, mas não era uma política da Igreja", analisa Domingues.
"Tornou-se um ensinamento. Não se pode ser católico sem ser a favor do
ecumenismo, da unidade dos cristãos. Um católico que é contra outros cristãos
não é essencialmente católico."
O vaticanista explica que é um
princípio do concílio que os membros da Igreja Católica rezem e busquem amizade
com os de outras denominações. E isso é visível na postura dos papas, que não
raras vezes se encontram com líderes de outras religiões.
E isso vale, de certa maneira,
também para as igrejas não cristãs. "Embora a Igreja Católica continue
acreditando que não há salvação sem Cristo, ela se abre para a ideia de que o
espírito de Deus pode se manifestar de alguma forma por meio de outras
religiões e até mesmo de pessoas que não acreditam. Em outras palavras, não
quer dizer que aquelas pessoas não batizadas ou que não creem em Deus são
blindadas pela ação do Espírito Santo", contextualiza o vaticanista.
"Isso muda completamente a presença da Igreja no mundo."
Por fim, a Igreja também fez o que é chamado de
"movimento patrístico", ou seja, um mergulho em suas próprias bases
teológicas. "Foi uma redescoberta dos santos padres, as fontes
referenciais da tradição católica. Isso foi fundamental", acredita Moraes.
Na mesma toada, a bíblia recupera o centro, com aprofundamentos de estudos.
"Nesse sentido, há avanços, inclusive porque a ciência bíblica católica
fez uma exegese profunda do texto, um trabalho muito sério, contando com a
colaboração da linguística, da arqueologia…", exemplifica o professor.
Para Moraes, foi inaugurada uma
"nova teologia" levando em consideração "os pais da igreja e os
avanços exegéticos nessa 'volta à bíblia'".
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-63212627.
Acesso em 11/10/2012
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