Autor
de Riqueza
das Nações, em suas teorias Smith quase não menciona as mulheres do
seu tempo e, quando o faz, insinua que elas, caso tivessem acesso a renda e
conhecimento, poderiam atrapalhar o crescimento da economia.
Morto
em 17 de julho de 1790, o iluminista e suas concepções misóginas encontraram
eco nas cabeças de adolescentes bolsonaristas deste obscuro século 21, durante
uma aula de ciências humanas em uma tradicional escola particular de classe
alta de Porto Alegre.
Cabe
lembrar que a exclusão das mulheres durante o Iluminismo – movimento
intelectual surgido na Europa no século 18 e que forjou as bases ideológicas da
Revolução Francesa (1789-1799) – não é um tema estranho ao mundo da educação e
aparece com frequência nas provas do Enem.
No dia 18 de março
de 2022, quase dois séculos e meio depois da morte de Smith, um estudante do 8º
ano resolveu interromper uma aula sobre exclusão e invisibilidade histórica das
mulheres na política desde o período iluminista com impropérios e ataques à
ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e em defesa de Jair Bolsonaro (PL). “Onde tem
mulher, só acontece merda”, disparou o estudante.
Ele
acabou sendo convidado a sair da sala, a família apresentou uma queixa à
direção e a professora foi demitida meses depois de forma dissimulada. A escola
nega a relação entre o episódio e a demissão, mas não apresentou um motivo para
a dispensa.
A
professora de ciências humanas que foi demitida supostamente por pressão da
família do aluno é socióloga, pedagoga, doutora, mestre e licenciada em
história. Ela lecionava na instituição desde 2019.
“O
desligamento foi uma questão política. As agressões e pressões de alunos e de
pais contra professores sempre foram uma realidade e a escola nunca se
posicionou”, enfatiza ela, que concedeu entrevista com a condição de anonimato.
A instituição não respondeu aos pedidos de informações.
O
Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência (NAP), mantido pelo Sindicato
dos Professores (Sinpro/RS) para acompanhar casos de violência implícita ou não
no ambiente de trabalho, acompanhou o caso e reuniu-se com a direção da escola
no dia 6 de agosto.
De
acordo com Cecília Farias, diretora do Sinpro/RS e coordenadora do NAP, a
instituição reiterou que a demissão não teria relação com o caso e argumentou
que emprega professores de diferentes posições políticas. A escola, no entanto,
não esclareceu o motivo do desligamento.
Iluminismo
e a exclusão
A
professora relata que a aula citava Adam Smith entre outras figuras do
Iluminismo, tendo como questão central a forma como as mulheres foram
invisibilizadas nas teorias sobre desenvolvimento econômico, assim como a
exclusão às mulheres se mantém na atualidade e a importância de ações
afirmativas e do combate à discriminação.
A
maioria dos alunos assimilou o conteúdo, investigando sobre as mulheres no
Iluminismo. O debate estava fluindo, mas a certa altura a aula foi interrompida
com argumentos fora de contexto e ofensivos, conta a professora.
“Estava
finalizando a aula e contextualizei o tema, afirmando que muitas ideias do
Iluminismo no século 18 ainda permanecem. As mulheres não estão representadas
em vários espaços de poder e política. Citei a lei que prevê cotas para a
participação das mulheres na política. Em vários momentos, tive que pedir
silêncio e atenção, pois as risadas, os deboches e as piadinhas eram
frequentes”, relata.
Ofensas
misóginas
Quando
a professora mencionou “iluminismo” e a “participação das mulheres na
política”, um estudante interrompeu a explanação aos gritos.
“Ele
usou uma frase misógina para referir-se a ex-presidente Dilma Rousseff.
Argumentei que eu estava contextualizando o conteúdo para que os alunos
compreendessem, mas o estudante repetiu a brincadeira: ‘mas professora, o
discurso daquela mulher não era horrível?’”.
De
acordo com ela, o que se seguiu foi uma série de agressões verbais e acusações
contra ela por parte desse e de outros dois estudantes.
“Eu
pedi para que parassem e solicitei que fosse à coordenação, mas ele não quis
sair. Outros colegas saíram em defesa de Bolsonaro e acabaram também sendo
agressivos. Dessa discussão, eles começaram a me acusar, dizendo que eu havia
afirmado que o discurso do Bolsonaro era pior do que o discurso da Dilma. Só
que em nenhum momento essa comparação foi feita por mim em sala de aula. Não
entro nessa seara com alunos”, argumenta.
“Feminista
freireana”
Para
a professora, esse é um caso típico de aluno que se sente autorizado pelos pais
a confrontar e agredir professores por conteúdos em sala de aula – normalmente
os docentes são acusados de “doutrinação”.
“Eles
não têm argumentos, mas reproduzem as fake news que escutam em
casa, na tevê, no WhatsApp. Uma das mães me acusou se ser “feminista
freiriana”. Eu não penso que isso seja uma acusação. Eu penso que isso seja um
grande elogio. De qualquer forma, os alunos não vão questionar o que os pais
falam, mas o que o professor fala, obviamente. E eles estão com essa
argumentação em função do que eles leem, o senso comum, as fake news e
principalmente o que os pais falam em casa, o que eles escutam”, avalia a
professora..
Ela
considera que, nessa conjuntura, a docência se tornou uma profissão perigosa.
“Sim, vale a pena ser professor. Mas é preciso ser muito forte, ter um
propósito definido e muito claro. Sem a certeza de que o que tu estás fazendo é
correto eu diria que é muito difícil ser professor. Não é que valha ou não a
pena, mas é muito difícil. Nos tempos atuais ser professor é dar murro em ponta
de faca todos os dias porque tu lutas por verdades, eu como professora de
ciências humanas tenho que estar sempre provando a verdade dos documentos a
verdade dos fatos históricos, dos acontecimentos, do passado que influencia o
presente”, explica.
Temas
sensíveis em sala de aula
As
abordagens em sala de aula sobre temas sensíveis, alerta, são um dos maiores
desafios dos professores de instituições, em especial as particulares, que não
costumam dar respaldo ao seu quadro docente.
“Eu
tenho que cuidar as palavras que eu utilizo. Temas sensíveis como racismo,
desigualdade social, direitos humanos, que são básicos para se trabalhar em
sala de aula, tenho que cuidar a forma como falo para não ser interpretada como
“esquerdista”. Mas isso não tem nada a ver com partido político. Até mesmo a
Revolução Francesa, quando eu fui trabalhar a forma como se fala “direita” e
“esquerda” tive que explicar, reafirmar e trazer os dados para que eles
entendessem”, detalha.
A
professora desabafa que muitas vezes se sentia pressionada e desamparada em
sala de aula. “É um grande desafio diário, porque você luta contra a
ignorância, contra o preconceito e está sempre em constante embate com os
alunos que não conseguem compreender os conteúdos justamente devido a essa
bagagem que eles trazem de casa”.
Gênero
e iluminismo
O
episódio de violência simbólica em sala de aula desencadeado durante o
aprofundamento do debate sobre gênero e Iluminismo, provoca reflexões sobre as
disputas de poder no ambiente escolar. A professora acredita que a sensação de
desamparo tem a ver com aquilo que está em jogo em sala de aula, em uma
realidade distorcida do processo de ensino e aprendizagem.
“A
tua fala está em constante luta com os pais, que querem que tu tenhas um
discurso igual ao deles e também com a coordenação e direção, porque as escolas
não querem se incomodar. Querem fazer de conta que ensinam. E os pais querem
fazer de conta que os filhos aprendem, é puro status. O professor é cobrado de
todos os lados. Hoje não é mais o filho que tirou nota baixa ou não estudou que
precisa dar explicação para o pai, mas o professor que tem que explicar por que
aquele aluno tirou nota baixa. Eles não leem, eles não estudam, não buscam
conhecimento. Eles querem 100% de tudo pronto. Então, realmente é um grande
desafio”, desabafa.
“Mas
eu reitero: vale a pena ser professor, porque é só a partir de nós professores
e daqueles que realmente têm um propósito que a gente vai ser capaz de mudar
isso que está posto, o nosso mundo e o mundo de milhares de pessoas trazendo
luz, conhecimento para que as pessoas saiam do senso comum e comecem a pensar.
Disponível
em: https://www.extraclasse.org.br/ultimas-noticias/2022/08/professora-demitida-apos-aluno-reclamar-de-aula-sobre-iluminismo-e-exclusao-historica-das-mulheres/.
Acesso em 14/08/2022.
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