Com o fim progressivo da
escravização, milhares de pessoas negras foram expulsas das terras onde eram
escravizadas e obrigadas a migrarem para outros ambientes. Concomitantemente,
imigrantes europeus chegavam ao Brasil para trabalhar no campo e na nascente
indústria brasileira.
Entre os anos de 1850 e 1988 foram
promulgadas duas leis consideradas abolicionistas, aprovadas entre a Lei
Eusébio de Queirós (1850) e a Lei Áurea (1888), sendo a Lei do Ventre Livre
(1871) e a Lei dos Sexagenários (1885).
Em 1850, mesmo ano da lei
que estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no
Império brasileiro, a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei
de Terras, representou uma ruptura com o sistema de regulação territorial,
retirando a possibilidade de se receber a terra gratuitamente e, ao mesmo
tempo, impondo a compra como único meio de se apropriar do solo, o que
demonstra o uso da lei como instrumento para efetivar garantias do acesso à
propriedade aos que detinham os capitais necessários à sua compra e, de outro
modo, impedir os negros que estavam sendo progressivamente libertados
formalmente da escravização de acessá-la.
Foi a Lei de Terras a responsável por
impor, pela primeira vez no Brasil, a compra como único modo de adquirir a
terra, pois antes dela a terra poderia ser adquirida através da doação e do
apossamento de área pública – este último facilmente efetivado em grandes
extensões pela elite brasileira, que utilizava a mão de obra escravizada e, por
outra frente, da pressão política para efetivação do reconhecimento legal desse
apossamento (BENATTI, 2003). Atualmente, de modo distinto, a ocupação de terra
pública é reconhecida como invasão ou mera detenção.
Ainda que alguns autores insistam em
alegar que a Lei de Terras desfavoreceu também os imigrantes. Sabe-se que não
há como prosperar tal afirmação, uma vez que os imigrantes detinham acesso a
emprego formal, além das benesses decorrentes do pacto social da branquitude,
também denominado pela autora Maria Aparecida Bento (2002) de “pactos narcísicos”.
Nesse sentido, como bem retratou Carolina em sua obra Diário de Bitita (2014,
p.66):
Minha tia
Claudimira trabalhava para os sírios que vinham como imigrantes para o Brasil.
E aqui conseguiam até empregadas. Ganhava trinta mil-réis por mês, para lavar a
roupa, passá-la, cuidar das crianças, da casa e da cozinha. Pensava: “Por que
será que eles deixam a sua pátria e vêm para o Brasil?”. E dizem que o nosso
país é um pedacinho do céu. Não havia motivos para odiá-los. Porque gostavam do
país, e não perturbavam. Pensei: “Será que o Brasil vai ser sempre bom como
dizem eles? Por que será que o estrangeiro chega pobre aqui e fica rico? E nós,
os naturais, aqui nascemos, aqui nós vivemos e morremos pobres?”.
Portanto, ainda que aparentemente
omisso, o propósito da legislação era evidente: privar a população negra da
possibilidade de ter acesso à terra – em outras palavras, à moradia – levando,
assim, a uma segregação espacial forçada e mantenedora de discriminação.
Seguindo, temos que a moradia demorou
a ser inserida formalmente como um direito humano: nem mesmo através da
promulgação da Constituição Federal de 1988, responsável por inaugurar um
capítulo especial para a política urbana, isso se deu.
O reconhecimento formal veio somente
no ano de 2000 com a promulgação da EC nº 26, ainda que com entraves, já que a
mesma Constituição também fixou a impossibilidade da posse sobre bem público,
tanto para áreas urbanas como rurais, em seus artigos 183, §3º c/c 191
§único.
A moradia é relevante para efetivação
do combate ao racismo contra pessoas negras pois, mais do que uma faceta
mercantilizada do direito à propriedade, integra a construção dos nossos
valores como seres humanos.
É por essa razão que Sandra F.
Joireman e Jason Brown (2013) nos dizem que nossas casas são fundamentais para
nossa identidade, pois abrigam nossas famílias e memorias, e a ausência do
reconhecimento legal da moradia faz com que as pessoas não sejam bem tratadas,
nem que se vejam como tendo o mesmo status que aqueles que têm direitos de
propriedade legalmente definidos e vivem em comunidades legais, pois a falta de
legalidade na habitação leva a uma compreensão da personalidade que é diminuída
e uma percepção de si mesmo e pelo outro de marginalizado.
Sobre o tema, Carolina Maria
de Jesus o evidencia em outras duas obras, sendo elas Quarto
de Despejo e Casa de Alvenaria.
Ao escrever Quarto de Despejo,
Carolina se referiu ao fato de que, em 1948 na Cidade de São Paulo, quando
começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, os pobres que
residiam nas habitações coletivas foram despejados e ficaram debaixo das
pontes. Por isso, Carolina nos dizia que a favela era o “quarto de despejo” de
uma cidade.
Após a publicação e o enorme sucesso
do seu primeiro livro, Quarto de Despejo, Carolina mudou-se para o
bairro de Santana, classe média da capital paulista, e em sua obra Casa
de Alvenaria, retratou (JESUS, 1961, p. 22):
A tristeza estava
residindo comigo há muito tempo. Veio sem convite. Agora a tristeza partiu,
porque a alegria chegou. Para onde será que foi a tristeza? Deve estar alojada
num barraco da favela. A minha história pode ser resumida assim: era uma vez
uma preta que morava no inferno. Saiu do inferno e foi para o céu. Agora eu
estou na sala de visita. O lugar que eu ambicionava viver. Vamos ver como é que
vai ser a minha vida aqui na sala de visita.
A sala de visitas à qual a
Carolina se referiu, tratava-se da sua nova moradia, local onde ela esperava
que a sua vida fosse de alegrias por ter mais condições de salubridade, mas
como os marcadores de raça e gênero a perseguiam mesmo depois de sua saída da
favela, Carolina ecoou em nós o seu sentimento de inadequação e de não
pertencimento em diversas passagens da sua obra.
Ao ouvir palavras de baixo calão,
Carolina verificou que diversas crianças haviam soltado um balão que entrou no
quarto de uma de suas vizinhas. Apesar de todas as crianças serem um total de
onze meninos, apenas seus filhos foram alvo das violências verbais (JESUS,
1961, p.175): “favelados desgraçados, ordinários. A tua mãe não te dá
educação”, palavras usadas para marcar e atingir somente João e José,
filhos de Carolina.
Ao ouvir a ausência de conformação da
senhora que teve seu território ocupado pelo balão das crianças, Carolina
(1961, p. 175) pensou: “ela não compreende que a favela é obra de rico.
Os pobres não podem pagar os preços exorbitantes que os ricos exigem pelo
aluguel de um quartinho. E não podem ficar ao relento”.
Foi por denunciar o racismo em
ambientes lidos socialmente como de classe elevada que Carolina não manteve o
sucesso de sua obra inaugural, Quarto de Despejo, considerada, até
os dias atuais, como a sua principal obra.
Pessoas não negras aceitam ver, ouvir
e exaltar a exposição das mazelas que assolam o povo preto da favela, todavia,
retratar as nuances e preconceitos de pessoas brancas com acesso a renda
elevada no Brasil é inadmissível, o que ocasionou a invisibilização e
rebaixamento de Carolina como escritora, aliado ao fetiche em vê-la, tão
somente, como a autora de exceção.
O sucesso quase que único de Quarto
de Despejo é impor a continuidade de ver Carolina retratada apenas
como a favelada que improvavelmente escrevia e, embora isso não diminua sua
grandeza, faz com que não tenhamos acesso a tantas outras obras suas e, por
consequência, também à sua percepção de mundo ao frequentar outros ambientes
com pessoas não negras.
Como se percebe, a pobreza pode se
dissolver, mas os marcadores de raça, decorrentes de uma construção social
brasileira muito bem articulada, têm sérias implicações para a identidade das
mulheres negras e de seus filhos, ainda que elas ascendam socialmente por
intermédio de atividades elitizadas como, nesse caso, a escrita.
Assim, a efetivação do direito à moradia precisa ser de cunho coletivo, através de políticas públicas específicas que reconheçam essa necessidade, pois é preciso que muitas mulheres negras tenham acesso a moradia de qualidade para que a identidade delas e de seus filhos seja desvinculada da ideia de miséria, pobreza e ausência de educação, uma vez que a efetivação do direito à moradia não significa apenas poder e riqueza, mas pertencimento e dignidade, o que faz com que o Estado tenha um papel decisivo, para o bem ou para o mal.
Referências
BENATTI, José Heder. Direito
de Propriedade e Proteção Ambiental no Brasil: apropriação e o uso dos
recursos naturais no imóvel rural. 2003. 344f. Tese (Doutorado em
Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido – PDTU) – Núcleo de Estudos
Amazonicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2003.
BENTO, Maria Aparecida. Pactos
narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações
empresariais e no poder público. 2002. 185f. Tese (Doutorado) – Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia da
Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2002.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto
de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
JESUS, Carolina Maria de. Casa
de Alvenaria: diário de uma ex- favelada. São Paulo: Paulo de Azevedo,
1961.
JESUS. Carolina Maria de. Diário
de Bitita. São Paulo: SESI-SP editora, 2014.
JOIREMAN, Sandra F.; BROWN, Jason. Property: Human Right or Commodity? Journal of Human Rights 12, no. 2 (2013): 165-179. doi:10.1080/14754835.2013.784662. Disponível em: https://scholarship.richmond.edu/polisci-faculty-publications/73/. Acesso em 25 out. 2021.
¹ Cleilane Santos, advogada e mestre em Direito pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). Atualmente, é residente em Direito no Programa Rede
Amazônia pela Clínica de Direitos Humanos da UFPA em parceria com a Comissão de
Regularização Fundiária da UFPA. É aprendiz de escritora, se interessa pelo
tema da justiça social e não a imagina possível sem considerá-la a partir de
uma perspectiva racializada.
Disponível
em: https://www.geledes.org.br/a-moradia-como-um-caminho-de-combate-ao-racismo-uma-evidencia-atraves-das-obras-de-carolina-maria-de-jesus/.
Acesso em 02/08/2022.
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