Para os céticos, uma coincidência; para os que acreditam, mais
uma prova das capacidades do médium — Xavier morreu exatamente há 20 anos, no
mesmo domingo em que o Brasil venceu a Alemanha na final da Copa do Mundo e
conquistou o sonhado pentacampeonato.
Ele tinha 92 anos e era uma personalidade amplamente conhecida
no país. O filho de um vendedor de bilhetes de loteria e de uma lavadeira,
ambos analfabetos, havia se tornado o maior médium brasileiro, tendo escrito
mais de 10 mil cartas psicografadas e se consolidado como dono de uma obra de
mais de 450 livros — cuja autoria sempre foi atribuída a espíritos. No total,
vendeu cerca de 50 milhões de exemplares.
Nascido em Pedro Leopoldo, pequeno município na região
metropolitana de Belo Horizonte, Xavier alcançou a notoriedade com a publicação
de seu primeiro livro — embora fenômenos mediúnicos já fizessem parte de sua
vida desde a tenra idade.
Em 1932, quando ele ganhava a vida como
vendedor e tecelão e costumava publicar poesias em jornais — sempre atribuindo
os textos a autores mortos —, ele lançou a antologia Parnaso de Além-Túmulo, uma coletânea de 60 poemas, assinados por nove
poetas brasileiros, quatro portugueses e um anônimo.
A edição ficou por conta da Federação
Espírita Brasileira. E o livro alcançou repercussão no meio literário.
"Ele tinha pouco mais de 20 anos e era um matuto, um menino do interior de
Minas Gerais, filho de pais analfabetos, que colocava no papel poemas assinados
por nomes como Castro Alves, Augusto dos Anjos… E afirmava: 'foram eles que
escreveram, não fui eu'", conta o jornalista e escritor Marcel Souto
Maior, autor de, entre outros, As Lições de Chico Xavier e As Vidas de Chico Xavier.
"Era uma época em que ele, que já havia
trabalhado numa fábrica de tecidos, trabalhava 12 horas seguidas por dia como
vendedor no armazém de um tio. Tinha pouco tempo para leitura e para exercícios
de escrita", comenta Souto Maior. "O livro foi publicado e provocou
uma grande comoção, atraindo a curiosidade dos principais escritores da
Academia Brasileira de Letras."
Segundo o biógrafo, "95% dos escritores ficaram
impressionados com a qualidade e a versatilidade da escrita", sendo que
alguns comparavam com textos escritos em vida pelos autores ali citados e
encontravam muitas semelhanças no estilo, na métrica e na temática.
"Foi um impacto muito forte. E isso levou jornalistas a
Pedro Leopoldo, alguns interessados em desvendar aquele enigma, outros querendo
'desmascarar aquela fraude'", prossegue Souto Maior. "Houve um
impacto positivo e também um impacto negativo na repercussão."
Tal dicotomia perseguiu Xavier por toda a vida. "De um
lado, admiradores; de outro, profunda desconfiança", comenta o jornalista.
"Mas neste início dele, vejo algo forte e interessante. Ele foi se
tornando uma figura conhecida. E polêmica."
E se ele sempre manteve a simplicidade no seu dia a dia — três
anos depois, assumiu um posto de escrevente-datilógrafo em uma fazenda modelo
ligada ao Ministério da Agricultura —, a escrita passou ser parte indissociável
de seu dia a dia como médium.
De certa forma, foi essa obra literária mediúnica que atraiu
Souto Maior ao universo de Xavier. Ele se recorda que, nos anos 1990, era então
subeditor de Cultura do Jornal do Brasil quando ficou curioso para ver uma peça
de cunho espírita que estava arrebatando as bilheterias no Rio de Janeiro. Era Nosso Lar, baseada no
best-seller homônimo psicografado por Xavier.
"Recordo-me até hoje do que escrevi depois, no jornal,
sobre a experiência, aquele universo em que o centro era Chico Xavier. Coloquei
no papel que ele havia então escrito mais de 400 livros, vendido mais de 30
milhões de exemplares e doado toda a renda dos direitos autorais a instituições
beneficentes", relata o jornalista.
Xavier costumava dizer que os livros não pertenciam a ele. Que
ele não havia escrito nada, mas que eram obras dos espíritos. "Aquilo para
mim era muito intrigante. Por isso decidi ir até Uberaba, apesar de muito
cético, muito descrente", diz.
Era em um centro espírita na cidade do Triângulo Mineiro que o médium então exercia suas atividades.
O símbolo do espiritismo brasileiro
Esse fascínio e todo o carisma de Xavier fizeram dele o maior
nome do espiritismo kardecista brasileiro. E também foi o que trouxe muitos
adeptos para a doutrina fundada na França no século 19.
"Chico Xavier não foi só o grande médium, mas todo o
espiritismo brasileiro ganhou uma feição diversa depois de sua aparição. Ele
não é apenas um médium carismático, é antes de tudo um modelo de espírita
exemplar, que é também um modelo de santo cristão exemplar a ser seguido e
imitado em sua caridade, humildade e renúncia, não por acaso temas do
catolicismo", contextualiza o filósofo e antropólogo Bernardo Lewgoy,
professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do livro O Grande Mediador: Chico Xavier e
a Cultura Brasileira.
"Ele nacionalizou o espiritismo kardecista francês, criando
uma escatologia nacional própria nos anos 30 e 40. Por outro lado, aproximou o
antigo Kardecismo elitista das pessoas mais simples, valorizou as mulheres como
personagens ativas nos centros espíritas e na prática familiar do
espiritismo", complementa.
O antropólogo avalia que Xavier consagrou-se "como uma
espécie de 'santo informal' do espiritismo". "Os livros e as
mensagens de Emmanuel e André Luiz [os dois principais nomes a quem ele
atribuiu a autoria de seus textos psicografados] são presença e leitura
obrigatória em centros espíritas brasileiros", comenta.
Um dos temas centrais do livro O Grande Mediador é como Xavier conseguiu
popularizar o espiritismo em um país de raízes fortemente católicas como o
Brasil. "O espiritismo chegou ao Brasil no século 19, quando o catolicismo
era religião oficial do Império", pontua Lewgoy.
"Mas o catolicismo nunca foi homogêneo: sempre houve
devoções populares e misturas sincréticas com outras religiosidades de origem
indígena e africana. A crença em espíritos que sobrevivem após a morte do corpo
e que retornam periodicamente parece ser uma moeda comum dessa espiritualidade
difusa abrigada no grande manto católico-popular", avalia o pesquisador.
"O espiritismo é uma religião urbana de classes médias
inseridas no crescimento de profissões típicas dessa classe, como médicos,
militares e professores. O apelo da experiência mediúnica com uma base cultural
europeia, pela questão do capital cultural envolvido, de que eram ávidos em sua
busca por legitimidade, numa época de difusão do positivismo e do evolucionismo
é fator de muito importância para esse segmento, associando-se a contatos com
parentes falecidos e práticas de caridade e de cura."
Na visão do antropólogo, estabeleceu-se então "um longo e
invisível diálogo sincrético, misturado a uma forte competição" entre
espiritismo e catolicismo. Este foi o caminho encontrado por Xavier, um homem
hábil em costurar "uma agenda nacional cristã-espírita, com influência do
catolicismo popular".
"Seu discurso era fundamentalmente cristão. E ele sempre fazia questão de dizer que a Igreja Católica era o berço de todos nós", ressalta o jornalista Souto Maior.
Biografia do médium
A mãe de Xavier era católica e morreu quando o garoto tinha
apenas 5 anos. Segundo alguns biógrafos, um ano antes ele já relatava ouvir
vozes do além. Quando se tornou órfão, passou a "ter diálogos"
diários com o que seria o espírito da mãe.
Diante da estranheza dos familiares — ele acabou sendo criado
por uma madrinha retratada como mulher violenta, que o castigava e açoitava —,
seu conselheiro na infância foi um padre da cidade natal.
"Ele foi fundamental para que Chico Xavier não fosse
internado pelo pai como um louco quando começou a ouvir vozes e ter
visões", conta Souto Maior. "O padre dizia para ele ter cuidado com
que falava, não contar tudo o que vivia… Por isso ele sempre teve um profundo
respeito e gratidão pelo catolicismo."
Foi só aos 17 anos que Xavier teve contato com a doutrina
espírita kardecista — e assim colocar o que vivenciava dentro dos métodos de
uma doutrina.
Mas se os livros ajudaram a sistematizar o legado de Xavier,
foram suas aparições na TV que renderam fama nacional. É considerada um marco
sua participação, ao vivo, no programa Pinga-Fogo da TV Tupi, em julho de 1971.
Ele acabou repetindo a participação no fim do mesmo ano e o
sucesso foi tamanho que, segundo a metodologia da época, 86% dos televisores
estavam sintonizados no programa.
Na década de 1980, o dinheiro arrecadado por meio de suas obras já
havia sido suficiente para fundar ou auxiliar 2 mil entidades de caridade em
todo o país. Para a doutrina espírita, a caridade é um princípio fundamental.
Na época houve uma campanha para que ele fosse indicado ao Prêmio Nobel da Paz.
"A mobilização rendeu 2 milhões de assinaturas", afirma o biógrafo
Souto Maior.
Segundo o último censo, de 2010, são 3,8 milhões de praticantes
do espiritismo kardecista no Brasil. Como bem define o antropólogo Lewgoy,
trata-se de "uma minoria religiosa de muito prestígio" e isso se
traduz no sem-número de filmes, telenovelas e outros materiais midiáticos que
retratam o assunto.
"O cristianismo evangélico tem uma clientela muito distinta
dos espíritas, que são de classes médias urbanas, de maior educação formal e
renda", compara o professor.
Por outro lado, é importante pontuar que o kardecismo, no
Brasil, acabou assumindo para si o título de "espiritismo", como se
não houvesse também no país outras religiões espíritas, de matriz africana e
indígena.
"Creio que sempre houve esse diálogo [do kardecismo com
outras religiões] embora marcado por condescendência e atitude de superioridade
moral dos espíritas em relação aos afros", comenta Lewgoy. "A disputa
em torno da 'propriedade' e legitimidade do uso do termo 'espírita' e a crítica
às manifestações de entidades de umbanda e candomblé em centros kardecistas são
indícios de tensões de longa duração nessa relação com afros."
Acesso em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61975677.
Acesso em 03/07/2022.
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