"Ela
exerceu protagonismo ativista em seu trabalho, sendo uma professora que,
naquele início de século, praticava uma educação progressista", comenta a
socióloga e cientista política Mayra Goulart, professora na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Além
disso, ela atuou como juíza de futebol entre 1917 e 1919 — muito possivelmente,
foi a primeira mulher brasileira a apitar jogos, embora não haja registro
oficial.
A luta pelo voto
O
protagonismo de Viana no que tange à participação feminina no processo político
brasileiro não pode ser elencado como um fator isolado. "Não foi uma
conquista individual, mas resultado de estratégia, articulação política e
avanço do movimento feminista no país", avalia a socióloga e cientista
política Joyce Martins, professora na Fundação Escola de Sociologia e Política
de São Paulo (FESPSP), coordenadora do Observatório Abrapel (da Associação
Brasileira de Pesquisadores Eleitorais) e autora do livro 'O novo jogo eleitoral
brasileiro'.
"O
contato deste [movimento] com congressistas do Rio Grande do Norte foi
fundamental para que Celina e outras mulheres potiguares pudessem se
alistar", acrescenta ela. "Isso porque, naquela época, os estados
tinham autonomia em matéria de legislação eleitoral e não havia nada na
Constituição do país que efetivamente proibisse as mulheres de votar."
Em 25 de outubro de 1927, entrou em vigor uma nova
legislação no Rio Grande do Norte para regular o serviço eleitoral. As novas
normas estabeleciam o fim da "distinção de sexo". No mês seguinte,
Viana, que vivia na cidade de Mossoró, deu entrada em seu pedido de alistamento
eleitoral.
Segundo pesquisas realizadas pelo
escritor e advogado potiguar João Batista Cascudo Rodrigues (1934-2009), o
despacho, assinado pelo juiz de direito Israel Ferreira Nunes, afirmou que
"tendo a requerente satisfeito as exigências da lei para ser eleitora,
mando que inclua-se na lista de eleitores". O documento, escrito a mão,
com caneta tinteiro em folha pautada, acabou incluído no acervo do Museu
Histórico Lauro da Escóssia, em Mossoró.
O despacho foi assinado no dia seguinte ao pedido
feito pela professora, conforme informações publicadas no Dicionário Mulheres
do Brasil, de Schuma Schumaher e Erico Vital Brazil. "Antes, muitas,
muitas, mulheres em várias partes do país haviam pedido alistamento e receberam
negativas", conta a historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques,
professora da Universidade de Brasília (UnB) e autora do livro 'O voto feminino
no Brasil'.
"O debate sobre o voto
feminino vinha aumentando desde os trabalhos constituintes, que ocorreram em
1880 e 1881 e deram origem a uma reforma significativa no sistema eleitoral
brasileiro, instituindo o título de eleitor, o voto direito para vários cargos,
proibindo o voto dos analfabetos e garantindo que todo brasileiro com título
científico pudesse votar, sem mencionar sexo", contextualiza Martins.
Goulart ressalta que é preciso
situar esse direito concedido a ela dentro do "bojo do movimento
sufragista que ocorria no Rio Grande do Norte". Era um ativismo que ecoava
o trabalho realizado pela bióloga, educadora e feminista Bertha Lutz
(1894-1976).
"Bertha Lutz capitaneava
essa luta em um momento em que vinha sendo regulamentado anteprojeto da
Constituição de 1932 [que tornaria o sufrágio feminino um direito em todo o
país]", pontua Goulart.
Tal movimento ganhou a adesão de
alguns homens, entre eles o advogado, jornalista e político Juvenal Lamartine
de Faria (1874-1956), que ocupou postos de deputador, senador e governador do
Rio Grande do Norte.
"Ele fez parte dessa
articulação. Foi um tipo de feminismo que se articulava com lideranças
masculinas. E Lamartine já se encantava com a ideia do voto feminino",
comenta Goulart.
Quando o congresso estadual do
Rio Grande do Norte preparava uma nova lei eleitoral, em 1927, Lamartine de
Faria mandou um telegrama solicitando que ficasse claro que ambos os sexos
teriam direito ao voto. E por isso ali o voto feminino se tornou possível antes
do que no restante do país.
"Justino Lamartine era um
político do Rio Grande do Norte que somava vários mandatos como deputado
federal quando foi contatado pelas feministas da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino", explica Novaes Marques. "Em 1927, ele deixou o
mandato de senador e concorreu ao governo do seu estado, com sucesso. Negociou
com o judiciário local promover o alistamento das mulheres potiguares que
preenchessem os requisitos legais aplicáveis aos homens. Isso representava uma
manobra para esticar os limites do federalismo em vigor".
E a primeira votação a contar com
essa participação feminina foi justamente a "eleição complementar para a
vaga de senador deixada por Juvenal Lamartine", conta a historiadora,
sobre a lacuna havida quando o político se tornou governador.
"Mas o pessoal não desistia,
né?", comenta ela. "[Logo em seguida] a comissão de verificação do
Senado que tinha a competência para averiguar o resultado eleitoral decidiu
anular os votos das mulheres do Rio Grande do Norte."
"Sempre que as mulheres avançam, minimamente, em
direção ao alcance da cidade, ainda hoje conquistada de modo incompleto, há
reação", argumenta Martins. "O voto de Celina, e das suas
conterrâneas que votaram pela primeira vez na mesma eleição, foi considerado
'inapurável'. Qual a diferença mais notável entre aquele tempo e o atual? Os
direitos políticos das mulheres se tornaram incontornáveis. No Brasil,
questionam-se as cotas ou a reserva de financiamento do fundo partidário, mas
já não há condições políticas ou sociais para a defesa do impedimento ao voto
ou à candidatura de mulheres."
Para o sociólogo e cientista
político Paulo Ramirez, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing
(ESPM), o ato de Celina Guimarães Viana precisa ser compreendido como algo que
"abriu brechas" em uma "sociedade de cunho patriarcal, com
valores machistas", como a brasileira.
"[A partir de então], outras
mulheres se inscreveram para passar a votar. Muitas, apoiadas por advogados,
começaram a reivindicar o direito de votar. Antes de 1932 [quando houve a nova
Constituição], chegou-se a um ponto em que vários juízes de vários estados
decretaram a impossibilidade de as mulheres votaram. Essa situação seria
revertida com a Constituição e a universalidade do voto, independentemente do
gênero".
Goulart ressalta que se o título
de eleitor de Viana abriu um precedente, é preciso entendê-lo dentro de
"um processo de luta de movimentos sociais que estavam buscando o voto
feminino". "O voto dela não é um voto isolado, que instaura o processo.
É resultado de um processo", afirma a professora.
Pioneirismos não eram novidade na
vida de Celina Guimarães Viana. Nascida em Natal, mudou-se para Acari, em 1912
e, dois anos mais tarde, para Mossoró, na companhia do marido, o também
professor Elyseu de Oliveira Viana — ambos se conheceram na Escola Normal de
Natal.
Em Mossoró, assumiu a educação
infantil no grupo escolar. Segundo a socióloga Mayra Goulart, em suas aulas
Viana aboliu uma prática comum na época: os castigos físicos para punir alunos.
"E incorporou o teatro como forma de exercer a docência", afirma.
"É interessante que ela tenha sido protagonista não só na dimensão
eleitoral e política, mas tenha trazido isso na dimensão da sociedade, na
escola, ou seja, na instituição fulcral para o avanço de um ideário
progressista."
Por sua profissão, ela
"tinha um grande status na época", ressalta Martins. Ramirez lembra
que tanto ela quanto seu marido eram "ativos no processo
educacional".
"Ela viveu em uma cidade de
muita luta política e caráter emancipatório", contextualiza o sociólogo.
"Como professora e leitora de jornais, ela era consciente. Não
necessariamente liderou um movimento feminista, mas, claro, acabou servindo de
inspiração para os movimentos feministas na busca de ampliação de direitos
políticos."
"Seu nome inspira o
feminismo até hoje em termos de ampliação da participação da mulher na luta
política. Como pioneira, ela se tornou um modelo de tudo aquilo que as mulheres
ainda têm para adquirir politicamente no país", conclui Ramirez.
O futebol também se tornou um
elemento trazido por ela para a sala de aula. Com seus estudantes, ela
encarregou-se de traduzir as regras do esporte importado da Inglaterra,
inclusive procurando sinônimos em português para nomes das posições de de
lances do esporte.
Em um tempo em que era comum que
personalidades de respeito na sociedade fossem chamadas para atuar como
árbitros em partidas, foi nessa época que ela se tornou, muito provavelmente, a
primeira mulher a apitar jogos de futebol no Brasil, entre 1917 e 1919.
"Ela foi pioneira por
trabalhar no espaço público, por dedicar-se ao conhecimento, por defender o
voto das mulheres, por ter sido também juíza de futebol", acrescenta
Martins. "Ela foi influenciada pelo movimento feminista daquela época, por
Bertha Lutz, pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Mas é
complicado dizer que se tornou 'uma ativista feminista' quando olhamos o termo
com os olhos de hoje. O feminismo naquela época tinha outras preocupações.
Lutava pelo mínimo: para que as mulheres fossem consideradas gente, para que
fossem percebidas como sujeitos de direito."
Disponível
em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62100807.
Acesso em 10/07/2022.
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