— Eu mesmo, nos meus tempos de
aventuras, / cheguei a envergar um garboso fardão, / vestido então como ironia
dura, / a fantasia pura da ilusão! / juntava-me, naquele instante, aos muitos /
que alfinetavam a Instituição / mal sabia eu quais os intuitos, / do destino
astuto a interrogação. Um amigo lembrou-me outro dia / que as ironias sempre
trazem seu revés / papéis trocados, eis aqui, vida vadia: / fardão custoso,
bordado a ouro, vistoso, / me revestindo da cabeça aos pés.
No início do seu discurso, Gil
ressaltou o fato de ter chegado, no limiar dos seus 80 anos, à Casa “onde já
estiveram tantos escritores de minha admiração, alguns dos quais foram amigos
queridos, na condição de primeiro representante da música popular do Brasil a
ser eleito para esta instituição”.
— Entre tantas honrarias que a vida,
generosamente, me proporcionou, essa tem para mim uma dimensão especial, não só
porque aqui é a Casa de Machado de Assis, um escritor universal, e
afrodescendente como eu, mas também porque a ABL, fundada em 20 de julho de
1897, representa, mesmo para quem a critica, a instância maior, que legitima e
consagra de forma perene a atividade de um escritor ou criador de cultura em
nosso país — disse o compositor.
Contando com o prefeito do Rio
Eduardo Paes na mesa, a cerimônia teve na plateia a presença de acadêmicos, de
atrizes como (a também acadêmica) Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Malu
Mader, Cissa Guimarães, Arlete Sales e Jessica Ellen, músicos como Jorge
Benjor, Carlinhos Brown, Fernanda Abreu e também José Bonifácio de Oliveira
Sobrinho e o casal Marcelo Freixo e Antônia Pellegrino. Vieram também suas
filhas Preta, Maria, Bela e Nara, além da mulher, Flora.
Gil confessou que, até recentemente,
não havia pensado em concorrer a uma cadeira da ABL, “mesmo sabendo que Tom
Jobim chegara a se inscrever em 24 de setembro de 1993, retirando em seguida a
candidatura em homenagem a seu amigo Antonio Callado, eleito em março de 1994”.
Antes da posse, comentou que há dois meses passou a frequentar mais a Academia
e que pretende “dar uma descontinuada” nas turnês para seguir frequentando. O
momento político do país, em grande medida, o impeliu à disputa.
— A Academia Brasileira de Letras é a
Casa da Palavra e da Memória Cultural do Brasil. E tem uma responsabilidade
grande no sentido de fortalecer uma imagem intelectual do país que se imponha à
maré do obscurantismo, da ignorância, e demagogia de feição antidemocrática.
Poucas vezes na nossa história republicana o escritor, o artista, o produtor de
cultura, foram tão hostilizados e depreciados como agora — denunciou, para
aplausos da plateia. — Há uma guerra em prol da desrazão e do conflito
ideológico nas redes sociais da internet, e a questão merece a atenção dos
nossos educadores e homens públicos. A ABL tem muito a contribuir nesse debate
civilizatório. E eu gostaria, aqui, de colaborar para o debate, em prol da
cultura e da justiça.
Gilberto Gil se apresentou aos
acadêmicos como alguém que “sempre procurou acompanhar o desenvolvimento das
novas tecnologias no que elas possam contribuir para o bem de todos.” E expôs
suas interrogações:
— O que será do Brasil em meio a esse
mundo de pandemias e guerras? Que destino aguarda a Amazônia? O que os
políticos estão fazendo para acabar com a fome e o analfabetismo? Quando
conseguiremos alcançar a tão sonhada independência científica e tecnológica?
Até quando o Brasil será o “país do futuro” de Stefan Zweig? — perguntou-se
ele, na incerteza de que algum dia vá ter as respostas. — Procurei, junto com
alguns brilhantes companheiros de geração, colaborar para que o Brasil fosse
respeitado e amado mundo afora. Participei de movimentos culturais como a
Tropicália, que continua dando frutos por aí. Tive grandes êxitos e alegrias
nesta vida. Mas também fundas tristezas, a maior e a mais dolorosa a perda de
meu filho Pedro Gil [falecido em 1989, num acidente automobilístico].
Mas não desanimo, porque é preciso resistir sempre.
Em tempos “politicamente sombrios”,
Gil disse apostar na esperança. E pediu a permissão para citar os versos de um
dos seus maiores sucessos, “Luar”: “Se a noite inventa a escuridão / a luz
inventa o luar / o olho da vida inventa a visão / doce clarão sobre o mar”.
— Contra a treva física e moral, que
haja ao menos a chama de uma vela, até chegarmos a toda luz do luar — disse o
cantor, compositor e imortal da ABL.
Em seu discurso, Gil ainda saudou os
acadêmicos, os amigos, a família (em especial a mulher, Flora) e os seus pais,
a professora primária Claudina e o médico José Gil Moreira (“a eles devo o meu
amor às letras e à música”). E fez longas menções aos ocupantes anteriores da
Cadeira 20: o patrono Joaquim Manuel de Macedo (“um nome a merecer resgate,
para além de sua eterna ‘Moreninha’”), o fundador Salvador de Mendonça, o
“poeta, satiristra e boêmio” Emílio de Menezes, Humberto de Campos, Múcio Leão,
Murilo de Melo Filho (seu antecessor imediato) e o general Aurélio de Lyra
Tavares – nome que teve certo desconforto em dizer, por tratar-se “de um dos
três integrantes da Junta Governativa Provisória que comandou o Brasil de
31 de agosto a 30 de outubro de 1969” — a mesma que levou Gil e Caetano a serem
presos e exilados.
— Mas, ao contrário, na constatação
de como gira, às vezes com ironia, a roda da História, do ponto de vista
acadêmico, os que conheceram e conviveram com o general Lyra Tavares nesta Casa
reiteram o seu comportamento sempre afável e solidário, sua cultura literária e
histórica e sua dedicação aos valores que balizam a história da ABL — amenizou
Gil.
Seguindo os protocolos, Fernanda
Montenegro entregou a Gil o colar de acadêmico; Arnaldo Niskier entregou a
espada; Cacá Diegues entregou o diploma e Merval declara Gil empossado na
cadeira 20.
Depois do discurso, esperavam os
convidados acarajé e abará de Carina, baiana radicada no Rio, e tapioca. Uma
festa baiana montada por Flora, segundo Gil, a pedido dos próprios colegas
acadêmicos.
Saudações dos colegas
No discurso em que recebeu o canto e
compositor na ABL, o acadêmico Antonio Carlos Secchin disse que a
Casa é não apenas de Machado de Assis, mas também de José do Patrocínio, Dom
Silvério Gomes Pimenta, Pereira da Silva, João do Rio, Domício Proença Filho e
“de tantos, enfim, que na história da Academia marcaram e marcam, de modo
indelével, a benfazeja herança da diversidade e a força da afro-descendência
para a cultura e as letras do país”.
— A perspectiva de Gil, ampla,
ecumênica, dissolve hierarquias e congrega alteridades — disse Secchin. —
Experimentador de formas, explorador de um largo espectro temático, o
cancioneiro de Gilberto Gil assombra pela complexidade e pela amplitude,
pautando-se, ao mesmo tempo, por um princípio de clareza e comunicabilidade. A
cadeira 20 vai comportar muitos Gilbertos. Por isso, equivoca-se quem supõe que
a ABL esteja simplesmente acolhendo Gilberto Gil; na verdade, ao acolhê-lo, ela
se engrandece com a chegada do múltiplo Gilberto Mil.
Domício Proença Filho exaltou a
novidade de Gilberto Gil na Academia:
— Sua presença na ABL evidencia dois
princípios reveladores da visão aberta da Casa: a integração de tradição e
contemporaneidade; a concretização de uma entre as múltiplas e necessárias
ações afirmativas da representatividade do negro na cultura brasileira.
Para o presidente da ABL e
imortal Merval Pereira, a Academia “recebe com alegria o grande poeta Gilberto
Gil, que representa a cultura popular brasileira de maneira sublime, e a
cultura afrobrasileira como parte dela”:
— Gilberto Gil, além do mais, foi
ministro da Cultura, podendo dar contribuições importantes no trabalho que a
ABL desenvolve na defesa da língua e da literatura nacional. Sua presença
na Casa de Machado de Assis expande, portanto, nossa abrangência cultural,
nossa diversidade de representações.
Poeta e letrista de canções, o
acadêmico Geraldo Carneiro festejou a eleição do colega:
— Gilberto Gil é um dos grandes
exemplos de como a força da palavra se encantou na música brasileira e criou um
repertório de imagens e ideias comuns a todos nós. A entrada de Gil na Academia
é uma celebração da vida e da poesia traduzidas em música. Como já disse um
poeta, é uma alegria pra sempre.
Já para a acadêmica Rosiska Darcy, a
chegada de Gil a ABL “é de imensa importância, assim como foi a de Fernanda
Montenegro, uma afirmação de que a ABL elege o que de melhor a Cultura
Brasileira oferece, em sua formidável diversidade, nossa maior riqueza”:
— É uma eleição cheia de simbolismos,
Gil é homem de muitos deuses, expressão estelar da Cultura Negra. A música
popular acolhe grandes poetas de língua portuguesa, Gil é um poeta de
excelência e, por isso, seu lugar é na Academia Brasileira de Letras.
Fonte:
https://www.geledes.org.br/gil-toma-posse-na-academia-brasileira-de-letras-poucas-vezes-na-historia-os-artistas-foram-tao-hostilizados/.
Acesso em 09/04/2022.
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