E
eu poderia seguir falando apenas da pré- estreia, que por si só já valeria um
registro documental por reunir tantos heróis e heroínas do nosso tempo em
diversas áreas (cultura, arte, ciência, comunicação, saúde, educação,
religião), com objetivo comum de garantia ao direito de existir. Isso é o
aquilombar-se que a narrativa nos traz. E, ao me transportar para o mundo
distópico da Medida Provisória 1888, penso: impossível essa galera ser
deportada.
Brincadeiras
à parte, o filme nos traz boas questões e analogias: o artigo 150 do Código
Penal que resguarda a inviolabilidade de domicílio na aplicação da medida e que
só funciona em bairro de classe média alta, a simbologia óbvia do 1888, a
personagem da Adriana Esteves se chamar Isabel, a lógica infundada de reparação
a partir do argumento de que o Brasil não é o lugar de negros, e até que ponto
nossos aliados antirracistas de melanina não acentuada estão dispostos a estar
na linha de frente para garantir justiça racial.
Um
jornalista que tenta noticiar os fatos, em seu blog, mostra também a
fragilidade de um país que tem na mídia independente um pouco de respiro e
espaço de garantia da memória por outras perspectivas. E tudo se mistura, real
e ficcional. Viver no Brasil segue desafiante para os não brancos. O filme nos
apresenta que mesmo quando negros alcançam posições sociais elevadas, a
“melanina acentuada” chega primeiro. E parafraseando o filme: “Como é que há
gente que ri disso? Como é que ainda seguimos neste ponto?”
Ponto
positivo para a não representação da favela. Causa estranheza, mas é importante
para não apresentar mais uma vez as narrativas sobre as violências que ceifam
corpos negros pela justificativa da criminalização nestes territórios. Afinal,
preto, em comunidade, sendo agredido numa sociedade como a nossa, acaba por ser
banalizado. Mas e a preta doutora que mora em bairro de bacana? E o preto
advogado? E o preto jornalista? Profissões estas dos personagens principais
Capitu, Antonio e André (este último interpretado por Seu Jorge).
Outro
ponto importante do filme é a luta pelo direito à educação. Estamos em ano de
debate e revisão da lei 12.711/2012, que instituiu a adoção de ações
afirmativas para ingresso nas universidades federais. Neste ano em que
celebramos os dez anos dessa política fundamental para o acesso da população negra aos espaços de educação, precisamos estar ainda mais
vigilantes por conta dos parlamentares aliados ao atual governo no Congresso
Nacional e que consideram as cotas sociais como caminho e desconsideram o
processo de, aí sim, reparação histórica, das cotas raciais.
Filme
para pensarmos as eleições e a atenção aos absurdos. Seria tão utópico no
Brasil de hoje, existir o Ministério da Devolução, com objetivo de deportar
todas as pessoas negras, de melanina acentuada, para o continente africano?
Talvez esse extremo não seja possível, mas, o que dizer sobre o cerceamento do
nosso direito de ir e vir sem carteira de identidade ou a legitimação do Estado
em monitorar nossas vidas? O desejo de Capitu de voltar em segurança para casa
e unir a sua família e, ao mesmo tempo, o medo de Antonio, ao sair do prédio,
sofrer violência e perder a chance de reencontrar a amada soa familiar?
Medida
Provisória é um presente que reúne pessoas que ajudam a construir a
historiografia negra contemporânea: Emicida, que nos mobiliza com suas canções
e ousadia inventiva na Lab Fantasma, Maíra Azevedo, a Tia Má, que ocupa a
internet e a TV com sua comunicação antirracista, Conceição Evaristo, que, pela
escrita, inspira as mulheres negras a serem insubmissas. E, também, Hilton
Cobra, gênio da arte, que em seu recente “Traga-me a cabeça de Lima Barreto”
expôs a importância do debate sobre saúde mental da população negra e da nossa
memória, maior tesouro e maior ferida do nosso povo.
Disponível em: https://www.geledes.org.br/filme-de-lazaro-ramos-apresenta-ideia-distopica-de-reparacao/.
Acesso em 17/04/2022.
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