Doutor em educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor
em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, Daniel Munduruku
defende que a palavra "índio" remonta a preconceitos - por exemplo, a
ideia de que o indígena é selvagem e um ser do passado - além de "esconder
toda a diversidade dos povos indígenas".
Por isso, "quando a gente comemora o Dia do Índio, estamos comemorando uma ficção", fala Munduruku, a respeito do 19 de abril. Reflexo disso são celebrações da data feitas por escolas, com uma "figura com duas pinturas no rosto e uma pena na cabeça, que mora em uma oca em forma de triângulo". "É uma ideia folclórica e preconceituosa."
"A palavra 'indígena' diz muito mais a nosso respeito do que a palavra 'índio'. Indígena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros", defende Munduruku, que pertence ao povo indígena de mesmo nome, hoje situado em regiões do Pará, Amazonas e Mato Grosso.
BBC News Brasil - Qual o problema da palavra "índio"?
Daniel
Munduruku - Do meu ponto de vista, a palavra
índio perdeu o seu sentido. É uma palavra que só desqualifica, remonta a
preconceitos. É uma palavra genérica. Esse generalismo esconde toda a
diversidade, riqueza, humanidade dos povos indígenas.
Quando a gente usa a palavra índio, estamos nos
reportando a duas ideias.
Uma é a ideia romântica, folclórica. É isso que se
comemora no dia 19 de abril. Aquela figura do desenho animado, com duas
pinturas no rosto e uma pena na cabeça, que mora em uma oca em forma de
triângulo. Há a percepção de que essa é uma figura que precisamos preservar, um
ser do passado. Mas os indígenas não são seres do passado, são do presente.
A segunda ideia é ideologizada. A palavra índio está
quase sempre ligada a preguiça, selvageria, atraso tecnológico, a uma visão de
que o índio tem muita terra e não sabe o que fazer com ela. A ideia de que o
índio acabou virando um empecilho para o desenvolvimento brasileiro.
BBC News
Brasil - Então, deveríamos abandonar a palavra "índio" e usar
"indígena"?
Munduruku
- Uma palavra muda tudo? Sim, uma palavra muda muito.
Nos meus vídeos e palestras, eu tenho sempre feito uma separação fundamental
entre "índio" e "indígena". As pessoas ainda pensam que
índio e indígena é a mesma coisa. Não é. O próprio dicionário diz isso.
A palavra indígena diz muito mais a nosso respeito do
que a palavra índio. A palavra índio gera uma imagem distorcida. Já indígena
quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros.
Ah, então eu nasci em São Paulo, eu sou indígena? Não,
você é nativo. Para ser originário precisa ter um pertencimento a um povo
ancestral. O antônimo (contrário) de indígena é alienígena, aquele que vem de
fora. Então, eu uso indígena para reforçar o fato de que somos originários.
Além disso, eu não sou um indígena qualquer. Eu tenho
um lugar de pertencimento: Munduruku. É importante reforçar a identidade dos
povos.
BBC News
Brasil - No Brasil, ainda é muito raro tratarmos os povos pelo nome. Por quê?
Munduruku
- É muito mais fácil usar uma palavra genérica do que
efetivamente dar aos povos indígenas o peso da sua identidade. Identificar os
diferentes povos indígenas significa garantir a eles direitos e políticas
específicas, não políticas genéricas.
BBC News
Brasil - Você já disse que o Dia do Índio, comemorado hoje, 19 de abril, é
"uma farsa".
Munduruku
- Quando a gente comemora o Dia do Índio, estamos
comemorando uma ficção, uma ideia folclórica e preconceituosa.
Por isso, quase sempre as comemorações desta data feitas nas
escolas reproduzem o estereótipo. Mas, se nós continuamos tratando isso como
ficção, vamos continuar deseducando nossas crianças.
Talvez a data devesse ser chamada de Dia da
Diversidade Indígena. As pessoas acham que é só uma questão de ser
politicamente correto. Mas, para quem lida com palavra, sabe a força que a
palavra tem. Tanto que apelido tem uma força destruidora - e "índio"
é, de certa forma, um apelido.
Um Dia da Diversidade Indígena teria um impacto
semelhante ao Dia da Consciência Negra, que gerou uma mudança absolutamente
significativa.
BBC News
Brasil - Então, como deveria ser lembrado o dia 19 de abril?
Munduruku
- A sugestão que eu sempre faço para escolas é que a
gente possa deixar de usar o 19 de abril como uma data comemorativa. É uma data
para a gente refletir. Deve gerar nas pessoas um desejo de conhecer, de entrar
em contato com essa diversidade dos povos indígenas.
BBC News
Brasil - Ainda há muito estereótipo no 19 de abril, ou já houve uma mudança?
Munduruku
- Houve um avanço muito grande na sociedade. Mas, sem
dúvida nenhuma, hoje ainda se reproduz muito desse imaginário do
"índio". E isso acontece por causa da escola. A escola é a última
instituição a se atualizar.
O que acabou ajudando na atualização dos professores
foi a lei 11.645, de 2008, que obrigou que a temática indígena saísse do 19 de
abril e se tornasse parte de algumas disciplinas escolares. Isso criou
condições para os professores se atualizarem, porque obrigou os governos a
comprarem livros, oferecerem cursos…
BBC News
Brasil - Como foi o seu processo de se reconhecer como indígena e Munduruku?
Munduruku
- Eu nasci em 1964, ano do golpe. Em 1967, os militares
criaram a Funai, que tinha entre suas prioridades nos tornar civilizados. Isso
significava apagar nossa história, nossa identidade. É nesse momento que eu fui
para escola. Eu sofri muito bullying, muita violência moral. E isso criou em
mim uma espécie de ojeriza pela minha identidade Munduruku.
BBC News
Brasil - Como era o bullying na escola?
Munduruku
- O bullying é uma forma de criar na gente uma repulsa
por aquilo que somos. Na escola, me chamavam de índio de uma forma pejorativa.
Dizendo que índio é bicho, é selvagem. Não queriam fazer atividade comigo
porque índio não é inteligente.
Parte do ano escolar eu vivia na cidade - essa era uma
das estratégias da Funai naquela época, tirar a gente do convívio com a
comunidade, para não falar a língua indígena, não conviver com rituais.
Já nas férias escolares, a gente voltava para a
aldeia. Mas, algumas vezes, a gente nem queria mais ir para aldeia, com uma
certa rejeição à nossa própria cultura. Quem abriu em mim outra perspectiva foi
meu avô. Ele me fez aceitar minha identidade Munduruku e gostar de ser quem eu
era.
BBC News
Brasil - O mês de abril, por conta do Dia do Índio, costumava ser um momento em
que o governo federal anunciava medidas ligadas aos povos indígenas - por
exemplo, a demarcação de terras. Qual sua perspectiva para este ano? (Nota da
redação: entrevista feita em abril de 2019)
Munduruku
- O presidente Jair Bolsonaro já declarou que não
entende absolutamente nada de povo indígena. A Força Nacional acaba de ser
convocada para ir para Brasília e coibir qualquer tipo de manifestação do
movimento indígena nos próximos dias - que é quando vai ocorrer o Acampamento
Terra Livre (assembleia de povos indígenas do Brasil, convocada para 24 a 26 de
abril, na capital federal).
Em uma de suas transmissões ao vivo (no Facebook), o presidente
disse que quer saber de onde vem o dinheiro para reunir 10 mil indígenas no
Acampamento Terra Livre, disse que essa farra vai acabar. Mas o próprio
movimento indígena já respondeu que o governo não dá nenhum tostão para
mobilização indígena.
Eu não quero ser profeta do caos. Mas minha
perspectiva é que as coisas vão piorar para os povos indígenas nesse governo.
Que o governo não vai fazer absolutamente nada favorável aos indígenas. Mas vai
dizer que vai fazer, por exemplo, que vai abrir terra indígena para exploração
mineral e que isso é positivo porque os indígenas querem ser iguais aos outros
brasileiros. E uma parte da população vai acreditar nesse discurso vazio.
(Nota da redação: após a publicação original desta entrevista, o
Acampamento Terra Livre em 2019 teve a presença de 4 mil representantes de
diversos povos indígenas do país todo, que apresentaram suas reivindicações.
Foram recebidos pelo Congresso e pelo STF. No Executivo, protocolaram suas
exigências com um funcionário de baixo escalão do Ministério da Saúde. )
BBC News
Brasil - Por quê?
Munduruku
- Somos brasileiros como todos os outros e temos direito
como todos os outros. Mas, no Brasil, quando se fala em direito, as pessoas
quase sempre pensam em privilégios. Esse governo tem repetido que o índio
precisa ser igual a todos os brasileiros. Quando diz isso, está falando em
acabar com os direitos que os indígenas possuem e que foram conquistados
legitimamente na Constituição brasileira.
BBC News
Brasil -Em um debate no Congresso, a senadora Soraya Thronicke (PSL-MS)
questionou por que os índios "continuam miseráveis", se "têm em
torno de 13% do território nacional, dinheiro destinado, política pública
destinada". O que o senhor achou disso?
Munduruku
- Uma coisa são as pessoas que realmente vivem na faixa
da miséria. Outra coisa é chamar de miserável o indígena, que tem uma cultura
milenar.
Quando a gente pensa que uma pessoa é miserável porque
ela não é como a gente, porque ela não frequenta shopping center, a gente está
sendo não apenas preconceituoso, mas racista. Essa senadora está julgando as
culturas indígenas a partir dos parâmetros de riqueza que ela tem. Portanto,
nem mereceria ser senadora.
BBC News
Brasil - Qual o papel da literatura na mudança da visão do indígena pela
sociedade?
Munduruku
- A literatura é um instrumento superinteressante de
construção de lugares de fala. Tem esse componente muito positivo de alimentar
nas pessoas outros olhares, outras facetas da existência.
A literatura que eu faço é comprometida, minha forma
de ser militante no movimento indígena. Eu tento usar a literatura para poder
falar das nossas culturas. A literatura é fundamental para a gente ir
desconstruindo esses estereótipos sobre os povos indígenas e ir construindo uma
percepção diferente.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47971962. Acesso em 19/04/2022.
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