Os
militares identificaram nos jovens que se vestiam à moda black a intenção de
“criar no Brasil um clima de luta racial”, como mostram documentos oficiais do
período. As suspeitas da ditadura iam além: o regime entendia que os jovens
agiam sob influência dos Panteras Negras, partido
político revolucionário que surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1960.
As
ilações não correspondiam à realidade, e chegavam ao extremo de sugerir que se
desejava criar um bairro independente na zona norte do Rio de Janeiro. Mesmo
assim, o regime perseguiu as lideranças responsáveis por organizar os bailes
soul. Dentre eles, Asfilófio de Oliveira, o Dom Filó, à frente da equipe de som
Soul Grand Prix (SGP).
“Nos
bailes da SGP, a música e o posicionamento político fluíam através de mensagens
codificadas na minha voz e nas grandes imagens projetadas nas paredes dos
grandes ginásios dando o tom no comportamento da juventude negra. Plantava-se
ali a identidade e autoestima naquela juventude leve e positiva que circulava
em bandos por todo o estado”, relembra Filó, em entrevista à DW Brasil.
Em
1976, ele foi preso após ser capturado na saída de um baile. Lançado em um
carro encapuzado, Filó passou a madrugada em uma sala úmida, sem saber onde
estava. Outros DJs e artistas que participavam dos bailes, como Gerson King
Combo, também foram presos e interrogados por sua participação nas festas.
“Democracia
racial”
A afirmação de elementos da cultura
negra incomodava a ditadura por ir de encontro à tese da “democracia racial”
propagada pelo regime. “Havia deliberadamente um desejo da ditadura, dos
governos militares, de apresentarem o Brasil como um paraíso racial, como um
lugar que não havia racismo”, comenta a historiadora Gabrielle Abreu,
pesquisadora do Instituto Vladimir Herzog.
Para ilustrar a afirmação, Abreu
relembra que o Censo de 1970, organizado pelos militares, suprimiu a categoria
“raça”. Além do apagão de dados gerado por essa decisão, a postura do regime
sobre a questão racial no Brasil contribuiu para silenciar as pautas do
movimento negro, na avaliação da historiadora.
“Vivemos hoje um certo iletramento
racial que vem muito da herança desse período, por conta de toda a interdição
da discussão sobre raça e racismo e da dificuldade do movimento negro em atuar
naquele período”, argumenta.
O silenciamento descrito por Abreu
contribuiu para enraizar uma visão segundo a qual somente militantes
organizados foram alvo da violência política. Esses grupos eram compostos, em
sua maioria, por jovens brancos de classe média. Portanto, a violência de
Estado sobre outros grupos acabou invisibilizada.
De acordo com o relatório final da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), 434 pessoas foram mortas ou desaparecidas
por motivos políticos entre 1964 e 1985. Porém, este mesmo documento afirma que
ao menos 8,3 mil indígenas foram mortos em massacres, remoções forçadas e
torturas neste período.
Essa incongruência também se aplica à
opressão vivida pela população negra durante a ditadura. Com anuência oficial,
esquadrões da morte formados nas polícias de Rio e São Paulo promoviam
execuções sob a lógica do justiçamento nos subúrbios e periferias das grandes
cidades.
“O número oficial, reduzido, de
vítimas da ditadura, esconde um conjunto grande de violências que foram
perpetrados contra vários setores da sociedade e, particularmente, a população
negra. E não apenas pela perseguição a pessoas envolvidas em movimentos
políticos e culturais da população negra. Essa visão vai se expressar naquilo
que a gente historicamente chama de ‘violência comum'”, afirma o historiador
Lucas Pedretti.
Violência
política x violência “comum”
Em seu trabalho de doutorado pelo
Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), Pedretti se dedicou a analisar
as “fronteiras” da violência política durante a ditadura. O foco de sua tese
recai sobre o período de abertura democrática. Com o retorno da democracia, os
setores vinculados à esquerda foram reabilitados na vida política e ajudaram a
consolidar uma visão de repúdio sobre a violência direcionada a eles.
Em contrapartida, a opressão que
deriva do racismo estrutural e historicamente atinge a população negra continua
a ser enquadrada como “violência comum”. Portanto, cria-se uma distinção clara
com relação à violência política, restrita à caracterização do arbítrio do
Estado contra opositores, na visão do historiador.
“É justamente na abertura que vemos o
desenvolvimento de ideias como ‘bandido bom é bandido morto’, ‘direitos humanos
para humanos direitos’. Ao mesmo tempo que o Ulysses Guimarães fala na
promulgação da Constituição que tem ‘ódio e nojo da ditadura’, a própria
Constituição reproduz as estruturas militarizadas que geram cifras
inacreditáveis de milhares de mortos pelas mãos da polícia a cada ano no
Brasil”, diz.
Dom Filó, que viveu na pele a
violência de Estado durante a ditadura, enxerga uma clara continuidade desse
processo nos dias atuais. A diferença entre os períodos estaria na visibilidade
que o extermínio dos jovens negros passou a ter. Aos 72 anos, ele olha para
trás com orgulho do que ele e seus pares empreenderam.
“Particularmente, vejo como uma
missão cumprida e estar vivo para repensar todo o processo é um
privilégio. O fato é que o movimento Black Rio foi uma importante luta
negra nos últimos 40 anos, a partir da juventude. Hoje, o seu legado está associado
ao diálogo com intelectuais ativistas e acadêmicos”, celebra.
Em 2019, Filó participou como
conferencista em um congresso na Universidade de Harvard sobre
“transnacionalismo negro na América Afro-Latina”. Ele foi o único não acadêmico
a palestrar. O convite partiu do DJ e pesquisador alemão Matti Steinitz,
professor da Universidade de Bielefeld e coordenador do Black Americas Network
no Centro de Estudos Interamericanos da instituição.
“O Black Rio conseguiu o que gerações
de intelectuais e ativistas negros como Abdias do Nascimento não conseguiram:
através do consumo coletivo de soul music estadunidense, centenas de milhares
de jovens afro-brasileiros tomaram consciência pela primeira vez de dimensões
específicas da ideologia da democracia racial e da discriminação contra
identidades negras”, analisa Steinitz.
Fonte: https://www.geledes.org.br/como-a-ditadura-militar-reforcou-o-racismo-no-brasil/. Acesso em 06/04/2022.
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