Uma forma simples de responder tal questionamento seria com
outra pergunta: “onde já se viu sereia, qualquer que seja?”
A escolha de uma mulher negra para representar a sereia Ariel
parecia uma ofensa à imagem construída e replicada por décadas, na qual esse
ser metade-peixe metade-mulher tem pele branca e cabelos ruivos. Um ser
fantástico, é preciso dizer. Mas que mesmo sendo fruto de lendas, mitos e muita
imaginação, não consegue transbordar as fronteiras do racismo.
À época, a polêmica da escolha foi rebatida, levando o debate,
justamente, para as amarras do racismo. Ninguém garantia que o escritor Hans
Christian Andersen tivesse concebido Ariel da forma como ela foi representada
pela mesma Disney, na animação produzida em 1989. E mesmo que o escritor
dinamarquês tivesse deixado ordens expressas de como seria sua personagem, as
sereias são seres fantásticos que habitam reinos subaquáticos de mares que
podem banhar a Europa, a América e a África. Deste modo, qualquer releitura
faria sentido, porque as sereias são construções humanas.
É curioso que esse tipo de busca por fidedignidade de histórias
inventadas ou vividas não tenha o mesmo ímpeto e revolta quando o que
ocorre é o inverso: o embranquecimento de personagens. Tal embranquecimento não
poupou Nefertite, nem tampouco os faraós do Egito Antigo. Nesses casos, valeram
as máximas da “licença poética” ou da “liberdade de expressão”, ou simplesmente
que o imaginário eurocentrado foi contemplado. Mas essa política de
embranquecimento descarada ganhou proporções globais e milenares quando
pensamos em Jesus Cristo.
Eu poderia parafrasear os racistas-indignados com a Ariel Negra
e perguntar: “onde já se viu um menino, filho de família palestina, nascido no
século 1 a.C., ser loiro e de olho azul?”, ou “Como esse mesmo menino
teria sido levado para o Egito, para passar despercebido pelas autoridades do
Império Romano, se ele fosse loiro e de olho azul?”. Como bem disse o pastor
Henrique Vieira, se Jesus Cristo não fosse um menino negro, ele teria
facilmente se destacado entre a população que vivia no Egito naquele período
(que poderia ser muitas coisas, mas, definitivamente, não era uma população
branca). Como o próprio pastor disse, “seria como tentar esconder uma criança
sueca numa escola na Nigéria”.
Todavia, não podemos aplicar a lei ancestral “olho-por-olho,
dente-por-dente” na comparação entre Sereia Ariel e Jesus Cristo. Ariel é uma
personagem fictícia que, mesmo tendo sido criada por um homem branco, pode ser
relida por outras pessoas. Já Jesus Cristo foi um dos homens mais importantes
da história da humanidade, mesmo para quem não é cristão. Um homem que nasceu
na Galileia, quando essa região estava ocupada pelo Império Romano, que de
acordo com muitas interpretações baseadas em documentos de época foi um grande
revolucionário – e que, por isso mesmo, foi perseguido, torturado e crucificado
(punição comum para aqueles considerado criminosos, desertores,
gladiadores).
A pergunta então, nesse caso, seria: por que incomoda tanto
Jesus Cristo ter sido um homem negro, sendo que todas as evidências históricas
apontam para isso?
A resposta está menos na vida e nos feitos desse Jesus Cristo
negro e revolucionário, e mais naquilo que foi feito de sua vida – uma
construção que teve várias fases, é verdade. Construir e replicar a ideia e a
imagem de um Jesus Cristo loiro e de olhos azuis, atrelando a essa imagem a
ideia de bondade e também de humanidade, foi um prato cheio para a efetivação
da colonização das sociedades americanas, do tráfico de africanos escravizados,
da exploração de todos aqueles que não eram a imagem e semelhança do grande
salvador.
Negar a negritude de Jesus Cristo é, nada mais, nada menos, do
que reforçar as amarras do racismo que nos constitui, desrespeitando não só a
história desse homem, como naturalizando a falaciosa ideia de que o bom, o belo
e o civilizado têm cores definidas.
Para que tenhamos um mundo diferente, sem que a faca do racismo
atravesse nossa existência, comecemos revisitando a história mais contada em
todo o Ocidente. Aquela que começa na noite em que um menino pobre e negro
nasceu numa manjedoura.
Quem sabe assim o Natal possa ser uma data feliz para todos nós.
Fonte: https://www.geledes.org.br/por-que-jesus-ser-negro-incomoda-tanto/.
Acesso em 27/12/2021
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