Por: Douglas Belchior e Viviane Pistache, enviado para o Portal Geledés
Ei
Brasil-Africano! Minha avó era nega haussá, ela veio foi da África, num navio
negreiro. Meu pai veio foi da Itália, operário imigrante. O Brasil é mestiço,
mistura de índio, de negro, de branco. Canto para Atabaque, de Carlos Marighella.
Mariga
é rio que corre nas terras sudanesas dos haussás; africanos muçulmanos que
lideraram a Revolta dos
Malês. Mariga é rio que banhou ancestrais de Maria Rita, mãe
de Carlos Marighella.
Mariga
é apelido conhecido entre camaradas de Carlos Marighella,
filho do italiano Augusto Marighella, um operário anticlerical e
anti-militarista que não chegava a ser anarquista.
Mariga
deságua no Atlântico, orla de Marighella, um baiano da diáspora rubro-negra.
Clara Charf, sua companheira de luta e de vida, costuma gracejar que na surdina
da madrugada, Marighella trouxe o Comunismo para a Bahia pendurando cartolinas
estampadas com foice e machado nos postes da capital. Desde jovem Marighella
forjava métodos originais de ação política de impacto visual; seja com foguetes
que faziam chover panfletos antifascistas no céu soteropolitano, seja com
assaltos a trens, carros fortes e bancos para financiar a guerrilha, ou
enfrentando a ditadura numa matinê de cinema. A valentia de Marighella era
respeitada pelos companheiros de luta e pelo chefe do Dops.
Assim,
um filme de ação emerge como a primeira e a mais orgânica escolha para
narrar a saga deste revolucionário. Com roteiro de ficção adaptado do
monumental ‘Marighella,
o guerrilheiro que incendiou o mundo‘, do jornalista Mário
Magalhães; Marighella é também um drama histórico e biográfico, numa
simbiose de gêneros.
O
que é coerente com o próprio Marighella, que se definia como um mulato baiano.
Homem do seu tempo, a miscigenação lhe moldou a visão de mundo e enegreceu seu
comunismo. Com poesia e capoeira, Marighella afinou suas ferramentas de luta
para o cultivo e a poda. “Quem samba fica, quem não samba vai
embora“.
É
um filme sobre a fase guerrilheira dentre as mil faces de um homem leal.
Ancorado nos seus derradeiros cinco anos, apresenta Marighella pouco depois de
abrir a mão de três décadas e meia de filiação ao partido comunista onde
militou como liderança estudantil contra o nazi-fascismo tropical, foi
parlamentar eleito, cassado, preso, constituinte, liderança sindical, caçado na
clandestinidade, companheiro e pai amoroso que apostou na controversa luta
armada. Um filme que a um só tempo expõe as fraturas da esquerda como indica
que o dissenso pode contemplar a lealdade e o sacrifício pelo bem comum,
fazendo da utopia o motor da ação e da emoção.
Marighella
se propõe a ser um filme que alcance uma audiência mais global ou distante
dos consagrados festivais e circuitos de cinema eruditos. É um filme de
esquerda que pretende furar nossa bolha camarada e disputar politicamente o
povo numa conjuntura de polarização. E tanto do ponto de vista à direita ou à
esquerda, Marighella foi um homem negro que na clandestinidade era chamado pelo
codinome Preto. Filho de mãe preta e pai branco, Mano Brown foi o
primeiro artista anunciado para o projeto. Mas sua intensa agenda de shows
inviabilizou o cronograma de ensaios. Outros atores e nomes da militância
chegaram a ser cogitados até que Seu Jorge arrebatou o personagem. Mesmo assim,
sua escolha para a pele do protagonista incomodou. A princípio parecia só
capricho da esquerda que prefere mortadela à coxinha de ossobuco.
Mas
nem tudo é só o que parece. Nosso audiovisual ainda se sente perfeitamente
confortável com o que o diretor Wagner Moura tem chamado de Síndrome
de Escrava Isaura, ou o processo histórico de embranquecimento de
grandes personagens a exemplo de Machado de
Assis, Chiquinha
Gonzaga, Gabriela, Tieta, etc. Reverter essa tendência apostando num
personagem já incendiário por ser comunista e guerrilheiro na pele de um negro
retinto, só escalona a afronta; não importa o quão multi-talentoso seja o
artista. Seu Jorge, assim como Marighella, é a face do povo que o estado
brasileiro elegeu como inimigo número um para ser caçado e exterminado. Nessas
circunstâncias, são homens de destino e ação extremamente corajosos. Marighella
foi um filho de Oxossi e Seu Jorge é um devoto de São Jorge que sobrevive a um
estado genocida; quiçá por ser mais escudo, enquanto Marighella era mais ponta
de lança. Homens de axé cuja existência é resistência.
E
o filme nos convoca a encarar a tortura em cenas agudas o suficiente para
despertar quem estiver em coma negacionista, ou exacerbar os tímpanos sensíveis
à graves violações de direitos humanos. Vale destacar o modo como o ator Bruno
Gagliasso se jogou sem paraquedas na encarnação de um agente da ditadura.
E tendo em vista que o nosso audiovisual historicamente promoveu a branquitude
como ideal de beleza, inocência, nobreza, sucesso e impunidade, a perversão do
delegado Lúcio-Fleury pode ter alguma função pedagógica na disputa de
imaginários. O reformado galã aparece na pele de um racista e torturador
convicto de que é um patriota de bem que combate o comunismo em aliança com
os agentes norte-americanos; sem entender inglês ou a dimensão do que de
fato está em jogo.
Um
grande desafio do filme foi apresentar a complexidade logística e de
recrutamento militar da Aliança Nacional Libertadora, a ALN, organização
fundada por Marighella e companheiros dissidentes do Partido Comunista
Brasileiro. Clandestina, a ALN teve alcance nacional, com atuação na cidade e
no campo e chegou a ter aproximadamente quinze mil membros ao longo de quase
uma década de existência. O filme opta por poderosos set pieces e por
amalgamar sujeitos e situações em meia dúzia de militantes próximos ao
protagonista. Alguns personagens históricos são um pouco mais evidentes como
Joaquim Câmara Ferreira, de codinomes Toledo, Branco e Velho, vivido por Luiz
Carlos Vasconcelos ou Virgílio Gomes da Silva, codinome Jonas, cuja resistência
inspira o guerrilheiro Jorge, vivido por Jorge Paz. A presença feminina da luta
armada tem destaque na guerrilheira Bella, vivida por Bella Camero. E a escolha
de dar aos personagens o nome do elenco é tanto solução de dramaturgia quanto
de entrega de cada atriz e ator que abraçou este projeto, como Humberto Carrão,
Rafael Lozano, Ana Paula Bouzas, Adanilo Costa e Guilherme Ferraz.
Ao
redor de Marighella e da ALN orbitam ainda os intelectuais, na figura de Jorge
(Herson Capri) um ex-companheiro de partido e jornalista, que mesmo discordando
da opção pela luta armada, protagoniza uma das mais belas cenas de lealdade e
sacrifício no enfrentamento ao regime; e os freis dominicanos, decisivos para a
logística da ALN e a emboscada em que Marighella foi executado. Destaque para a
atuação do pastor Henrique Vieira, que apresenta a igreja como uma instituição
de defesa e amparo ao povo preto, pobre e injustiçado, em franca oposição à uma
bancada da bíblia mercenária da fé num fundamentalismo de coalizão com o
presidente. Fora Herodes genocida! Mesmo que a batina esteja longe de ser capa
de super-herói, é possível resistir. O Brasil precisa mais de pastorais de luta
do que de pastores poderosos.
Marighella
é também o drama de um homem que ama e é amado por Clara (vivida por Adriana
Esteves), sua companheira que não adere à luta armada e ainda critica a
sua pretensa superioridade moral nos métodos de ação. (Essa é uma opção
fictícia, pois Clara Charf integrou a ALN no setor de logística). Marighella é
também o drama de um pai que sacrifica o convívio com o filho para lutar contra
a ditadura, num país de políticos que sacrificam as instituições democráticas
para blindar seus filhos. Marighella é um filme que traz as divergências como
parte do jogo democrático e um modelo de liderança horizontal traduzido na
máxima: “Ninguém
precisa de permissão para fazer um ato revolucionário“. Marighella
subverte até o clichê do protagonista de filme de ação que é bom de tiro e bom
de fuga. Se o Manual do Guerrilheiro recomenda que é “muito
importante aprender a dirigir, pilotar um avião, manejar um pequeno bote”, em nenhuma
cena Marighella assume o volante, já que ele simplesmente não sabia dirigir e
morre numa emboscada que foi tramada considerando esse fato.
O
filme também revisita a revolução cultural dos anos 60 em seu profundo
interesse e respeito por Marighella. Além do filósofo Jean Paul Sartre, citado
no longa, os cineastas Jean-Luc Godard e Luchino Visconti ajudaram a ALN financeiramente
a pedido de Glauber Rocha. Marighella assistiu o fundamental A
batalha de Argel de Gillo Pontecorvo, e virou filme do Chris
Marker um ano após seu assassinato. Carlos Marighella, também era íntimo da
nossa popular dramaturgia, pois foi amigo do casal Janet Clair e Dias Gomes,
seu ex-colega de partido.
Assim,
Marighella é um recorte da resistência político-cultural dos anos 60 feito por
um ator que estreia na direção assumindo ser forjado por um hibridismo de
referências que vão de Shakespeare, Stanislávski, Fátima Toledo, José Padilha
ou Irmãos Dardenne. O resultado é um filme sobre a ditadura, concebido nas
jornadas de junho de 2013, filmado e montado ao longo de 2018, que estreou e
circulou por festivais internacionais em 2019 e chega ao Brasil apenas agora,
sobretudo por causa da censura burocrática do bolsonarismo em declarado
desmonte da Ancine. Um filme que assim como a vida e obra de Carlos Marighella,
suscita reações acaloradas, como sintomas de sua relevância e atualidade.
Noutros tempos e termos, Wagner Moura reescreve o epitáfio em que Jorge
Amado retira da maldição e do silêncio o nome desse baiano, Carlos
Marighella. Um patriota que amou e morreu pelo país mas que foi excomungado da
democracia. Negro drama de quem nasce na rua do desterro e jaz na quinta
dos lázaros e tantos outros condenados da terra.
‘Há uma providência especial na queda de um
pardal’. Carlos
Marighella renasce na luta coletiva, de sua companheira Clara, de seu filho
Carlinhos ou de sua neta Maria Marighella que encarna seu legado na trama. Por
isso Marighella é um filme esperançoso, profundamente articulado a movimentos
sociais como Coalizão Negra Por Direitos, Movimentos de sem terra e sem teto,
Levante da Juventude e Brigada Marighella. Um filme atento às sugestões de
intelectuais, lideranças e parlamentares do campo da esquerda, conectando
distintos tempos e sujeitos da luta. Um filme que tem a benção de Reginha e
Miltão, casal fundamento do Movimento Negro Unificado em 1979; ano em que os
restos mortais de Marighella foram anistiados e sepultados em Salvador, numa
lápide concebida por Oscar Niemeyer e Jorge Amado, antigos colegas de
PCB. E assim como Carlos Marighella enfrentou a ditadura numa matinê de
cinema depois de ser baleado no peito, o filme esgotou a bilheteria antes da
estreia, afrontando a kakistocracia vigente. É isso, nenhum regime verde
oliva pode silenciar Carlos Marighella.
Douglas
Belchior é professor de história, fundador da Uneafro
Brasil e membro da Coalizão Negra por Direitos.
Viviane Pistache é roteirista, pesquisadora e crítica de cinema. Com experiência na Casa de Criação Cinema, O2 Filmes e Globo Play.
Fonte:
https://www.geledes.org.br/marighella-codinome-revolucao/.
Acesso em 16/11/2021
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