Um dos únicos negros da escola, ele sabia que passaria a segunda-feira na escola ouvindo piadas racistas que os colegas reproduziam de programas de humor na TV, como Os Trapalhões, que era transmitido aos domingos na época. Mussum — personagem negro — era retratado como cachaceiro, malandro, preguiçoso.
“Essas
crianças não vinham só contar piada, elas também não permitiam que eu
participasse de qualquer atividade com elas. Nunca me convidavam para ir para a
casa delas, não me escolhiam para trabalhos de grupo ou times de futebol”, diz
Moreira, que é doutor em Direito Constitucional Comparado pela Universidade
Harvard, nos Estados Unidos.
“O
problema não é só a piada, é como o conteúdo da piada determina o tratamento
das pessoas negras em todos os contextos. As piadas expressavam um estereótipo
do negro, e esse estereótipo me colocava na posição de alguém que não poderia
ter respeito social.”
Enquanto
crescia, Moreira observava como as pessoas brancas tentavam se eximir de
responsabilidades quando eram acusadas de racismo.
Usavam o argumento de que se tratava de uma brincadeira e citavam o fato de
terem “amigos” ou funcionários negros como “disfarce” para o racismo que
exerciam no dia-a-dia.
Profundamente
incomodado com isso, Moreira decidiu se debruçar sobre o tema e escreveu o
livro Racismo
Recreativo (Ed. Feminismos Plurais), no qual cunhou o conceito
que dá nome à obra.
Ele
analisou centenas de decisões judiciais que terminaram na absolvição de pessoas
brancas acusadas de injúria racial. Muitas justificavam ataques verbais
racistas como sendo “brincadeira”. E alguns usavam a suposta amizade ou a
relação cordial com negros no cotidiano como “álibi”.
“O
humor racista é uma forma com que pessoas brancas e instituições controladas
por pessoas brancas expressam condescendência e ódio por minorias raciais, para
reproduzir a ideia de que só pessoas brancas podem atuar de forma competente no
espaço público”, explica Moreira em entrevista à BBC News Brasil.
Moreira,
que também é professor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, em
São Paulo, destaca que grande parte das piadas ou comentários racistas expressa
a ideia estereotipada do negro como sendo violento, incapaz ou malandro; do
indígena como preguiçoso; e do asiático como pouco viril. E a contínua
propagação dessa imagem estigmatizada tem efeitos práticos na forma como eles
são tratados pela sociedade.
“O
objetivo do racismo recreativo é a manutenção da ideia de supremacia branca. Há
um caráter estratégico. As piadas acontecem com frequência no espaço de
trabalho e em situações específicas, como quando há possibilidade de promoção e
pessoas negras, asiáticas ou indígenas são candidatas”, destaca.
Confira
os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil – Qual a
definição de racismo recreativo?
Adilson José Moreira
– O humor racista é uma forma com que pessoas brancas e
instituições controladas por pessoas brancas expressam condescendência e ódio
por minorias raciais, para reproduzir a ideia de que só pessoas brancas podem
atuar de forma competente no espaço público. É um meio dessas pessoas ainda
manterem uma visão, uma imagem positiva de si mesmos. O racismo recreativo tem
sido usado no Brasil e em outros países para reproduzir a ideia de que minorias
raciais não são atores sociais competentes.
BBC News Brasil – De que
maneira o humor racista se manifesta no Brasil?
Moreira – De diferentes formas e
em diferentes espaços sociais. Ele está presente, por exemplo, em programas
humorísticos e aparece por meio de representações estereotipadas de minorias
raciais. O humor é uma mensagem. E, portanto, ele faz sentido dentro de um
contexto social específico. Um dos objetivos do humor racista é a reprodução de
estereótipos pejorativos sobre membros de grupos raciais. Por exemplo, um dos
personagens humorísticos mais famosos da televisão brasileira é o Mussum, dos Trapalhões.
Quais eram as características daquele personagem? Primeiro, o fato de ele ser
um cachaceiro.
Em
90% dos quadros nos quais aparecia, ele queria beber ou ter acesso a bebida.
Nisso você tem a reprodução da ideia do homem negro como cachaceiro e malandro.
Também havia a representação dele como pessoa que não poderia ser objeto de
apreciação estética ou que não poderia ser parceiro sexual ou amoroso. Em
alguns episódios, apareciam modelos famosas, mulheres brancas, como Xuxa e
Luiza Brunet, que morriam de amores pelo Mussum e João Macalé, outro personagem
negro. E o elemento humorístico era exatamente a disparidade entre essas mulheres
que representam um padrão ariano de beleza e duas pessoas vistas como feias,
que são o oposto. O pressuposto era: como uma pessoa pode ser um parceiro
sexual aceitável para essas mulheres?
BBC News Brasil – No seu
livro Racismo Recreativo, o senhor analisa processos penais
sobre racismo. Como o humor racista afeta decisões nos tribunais?
Moreira – Eu desenvolvi essa
teoria com base na análise desses personagens de televisão e também de centenas
de decisões judicias sobre injúria racial, na qual a injúria teve base no humor
racista. E é importante analisar o conteúdo deste humor racista. Quais são os
elementos mais comuns nesse humor, na representação dos negros? É o negro como
malandro, como cachaceiro, como pessoa que não gosta de trabalhar. Há um caso, que
eu analiso no livro, de um banco onde havia vários negros no departamento de
informática. Os demais funcionários passaram a se referir a esse departamento
como “a senzala”. “Ah, vou buscar um relatório na senzala. Vou falar com o
pessoal da senzala”. O que motivou o processo judicial foi a demanda de
determinados funcionários desse departamento de serem considerados para cargos
de chefia. O chefe passou a dizer: “veja só, o pessoal da senzala agora quer
assumir cargo de chefia”.
Então,
os estereótipos raciais, por meio do humor, justificam as disparidades. A
senzala era onde as pessoas escravizadas, que não eram vistas nem mesmo como
ser humano, ficavam. Então, quando você traz essa figura para o atual contexto,
você está dizendo: aqueles indivíduos são inerentemente inferiores, não são
atores sociais competentes e não podem demandar nem o mesmo nível de
respeitabilidade social nem as mesmas oportunidades das pessoas brancas.
BBC News Brasil – A
piada no ambiente de trabalho é usada, portanto, como instrumento para impedir
o acesso de pessoas negras às mesmas oportunidades de crescimento que as
pessoas brancas?
Moreira – Um dos elementos
centrais da minha teoria do racismo recreativo é seu caráter estratégico. As
piadas acontecem com frequência no espaço de trabalho e em situações
específicas, como quando há possibilidade de promoção e pessoas negras ou
asiáticas ou indígenas são candidatas. Por exemplo, a piada sobre ausência de
virilidade do homem asiático. Quando essas pessoas estão contando essas piadas,
elas não estão falando sobre o tamanho do pênis do homem asiático, estão
falando que ele não é suficientemente assertivo, que não tem o mesmo nível de
comando, de agressividade e, portanto, ele é incapaz de exercer um cargo de
gerente. Isso é uma ação coletiva para tornar o ambiente de trabalho
insustentável, para forçar a demissão da pessoa negra, para ela ser substituída
por uma pessoa branca. O objetivo do racismo recreativo é a manutenção da
supremacia branca.
BBC News Brasil – De que
maneira o humor racista se conecta com o mito da democracia racial, pelo qual o
Brasil seria um país miscigenado e sem racismo?
Moreira – O humor racista está
diretamente ligado à narrativa brasileira da democracia racial. 99% de todas as
pessoas brancas acusadas de racismo utilizam o mesmo argumento: a ideia de que
eles têm um amigo negro, uma empregada negra, um avô negro. O humor racista
sempre foi elemento importante de exclusão social em diferentes partes do
mundo: foi importante na exclusão dos judeus na Alemanha nazista e teve papel
importante no regime de segregação racial dos EUA. Agora, aqui no Brasil,
realmente há o uso estratégico do humor racista para preservar a ideia de
cordialidade. 98% das pessoas acusadas de racismo levam testemunhas negras para
dizer que não são racistas.
Há
um caso patético de um senhor branco acusado de injúria racial, e isso chegou
até ao Superior Tribunal de Justiça em que ele levou o porteiro como testemunha
para que dissesse ao tribunal que ele dava bom dia e boa noite todos os dias ao
funcionário. Ou seja, se ele cumprimentava o porteiro, ele não poderia ser
racista. É a ideia de inocência por associação. Se eu tenho interações sociais
com pessoas negras, se tenho amigo negro, se minha babá é negra, eu não posso
ser racista.
Então,
há duas coisas, o uso estratégico do humor racista e o uso estratégico na nossa
cultura da cordialidade racial. E isso cola para muitos juízes. O juiz branco
vê uma pessoa branca e estabelece relações de identificação com essas pessoas
brancas. Atualmente, 83% das pessoas do Judiciário são pessoas brancas e
heterossexuais que não têm nenhum contato com negros. Então, o juiz pensa, se
eu mandar esse cara para a cadeia, isso vai complicar a vida profissional dele.
Muitos juízes utilizam esse argumento de que veio uma testemunha que disse que
a pessoa interage com negros, então o ataque racista teria sido só “um
comentário infeliz”. Essa é uma das frases mais usadas em decisão judicial
sobre injúria racial.
BBC News Brasil – Então,
as pessoas usam o humor e a suposta amizade com pessoas negras como disfarce
para poder perpetuar o seu racismo?
Moreira – Exatamente. É uma
estratégia para manter uma imagem social positiva. No lugar de dizer “eu odeio,
desprezo negros”, eu faço uma piada que me permite expressar a mesma coisa.
Quando chamo negro de macaco, eu estou dizendo que não o reconheço como pessoa
humana.
BBC News Brasil – Uma
fala comum entre quem faz piada racista é dizer que não há ‘intenção’ de
ofender. Como seu livro responde a esse argumento?
Moreira – Sim, um dos principais
argumentos de quem comete crime de injúria racial é o da ausência de intenção,
ausência subjetiva do tipo penal. A pessoa não queria ofender, queria
simplesmente fazer graça. Há um caso de uma mulher negra que foi a um
supermercado e quando ela estava pagando a mercadoria uma mulher branca se
aproximou e disse: “você deve ter muito macaco em casa, você está comprando
tantas bananas”. A mulher negra chamou a polícia, a mulher branca foi detida e
processada. Mas, quando chegou ao tribunal de justiça, eles disseram, a
intenção está ausente. Eles ainda deram um conselho a essa mulher negra, de que
ela não deveria ser tão sensível se quisesse sobreviver socialmente.
O
meu livro procura responder exatamente a esse problema da ausência subjetiva de
tipo penal. Eu recorro a teorias psicológicas do humor. E uma dessas teorias é
a Teoria da Superioridade, que começou com Aristóteles. Segundo essa teoria, a
malícia é elemento central do humor. Nós rimos das pessoas que achamos
inferiores, rimos das situações em que essas pessoas se encontram e achamos que
estão em situações ridículas porque consideramos que elas são inferiores. O
objetivo fundamental do humor hostil é a gratificação psicológica. Quando rio
de piadas racistas, estou afirmando meu sentimento de superioridade em relação
a esse grupo. Quando pessoas brancas contam piadas racistas, elas não estão
procurando, como dizem várias decisões judiciais, buscar um ambiente de
descontração. Essas pessoas estão procurando obter gratificação psicológica com
a prática do racismo. Como não podem dizer abertamente que odeiam ou desprezam
negros, eles utilizam o humor, porque o humor é socialmente aceito.
BBC News Brasil – Quando
na sua vida pessoal você começou a ter consciência dos impactos do humor racista
e ser alvo disso?
Moreira – Desde a infância, eu me
sentia profundamente incomodado com duas coisas: primeiro, com a completa
ausência de pessoas negras nos meios de comunicação, com a ausência de modelos
positivos de pessoas negras na televisão. Para muitas pessoas, a televisão é a
única referência de mundo e os meios de comunicação dizem: pessoas brancas são
naturalmente superiores e negras, inferiores. Isso não é algo dito abertamente,
como no caso de programas humorísticos como Os Trapalhões. Isso
é dito pela ausência.
Como
foi boa parte da minha infância e adolescência? Eu chegava na segunda na escola
e vinha aquele tanto de crianças brancas reproduzindo as piadas que tinham
ouvido no domingo. O problema não é só a piada, é como o conteúdo da piada
determina o tratamento das pessoas negras em todos os contextos. Então, eles
não vinham me contar piada, eles não permitiam que eu participasse de qualquer
atividade com eles. Nunca me convidavam para ir para a casa deles, não me
escolhiam para trabalhos de grupo, times de futebol. Então, quando as pessoas
falam que algo é mimimi, é importante saber que as pessoas atuam a partir das
ideias que elas têm na cabeça.
Elas
não discriminam as outras e a polícia não vai às ruas com o propósito
específico de matar negros, isso surge em função da reprodução dos estereótipos
raciais negativos transmitidos na televisão e no cotidiano, por meio de piadas
racistas. São os programas de televisão, além da própria cultura corporativa da
polícia, que fazem os policiais acharem que podem matar pessoas negras sem
maiores consequências.
BBC News Brasil – O que
pessoas brancas devem fazer para contribuir para o combate ao racismo?
Moreira – Elas precisam
reagir. Elas realmente precisam reagir. Quando ouvir uma piada racista, primeiro,
não é para rir da piada. Depois, vou deixar claro para a pessoa que esse
comentário é inapropriado. E é importante explicar para as pessoas as
consequências da reprodução desses estereótipos. Então, dizer que quando você
reproduz essa piada, você está propagando a ideia de que negros são inferiores.
E ao fazer isso você reproduz uma cultura racista. Então, quando uma pessoa
negra vai procurar emprego, aquela pessoa branca que está entrevistando, está
com aquele estereótipo ativamente na cabeça dela, determinando a competência da
pessoa negra em exercer aquela função.
BBC News Brasil – Como
responder ao argumento cada vez mais utilizado nos dias de hoje de que tudo é
mimimi, que, por exemplo, trabalhar pelo fim de piadas machistas e racistas
seria mimimi?
Moreira – É muito fácil
desconstruir o argumento do mimimi. É mesmo, é mimimi? Então me conta uma
coisa: você gostaria de ser tratado pela polícia da mesma forma com que negros
são tratados pela polícia? Você gostaria de ser tratado como pessoa negra no
mercado de trabalho? Nenhuma dessas pessoas vai dar uma resposta positiva a
essas perguntas.
BBC News Brasil – Que
mudanças o senhor observa da sua infância para hoje em relação à consciência do
Brasil sobre a existência do racismo no país?
Moreira – Minha infância foi
durante a ditadura militar. Era um regime comprometido com a imagem do Brasil
como uma democracia racial. E, dentro daquele regime, grupos sociais foram
desmantelados e os militares sempre viram o movimento negro como ameaça, como
perigoso. Houve uma política de reprimir qualquer mobilização em torno da
questão da raça. A ditadura acabou, o movimento negro se rearticulou, tentou
persuadir administrações sobre a relevância da pauta da justiça racial. Muitas
responderam positivamente. Nos anos 2000, começam programas de ações
afirmativas, negros começam a chegar às instituições e começam a produzir
conhecimento. Hoje estamos num momento em que nunca se produziu tanta coisa
sobre os diferentes sistemas de reprodução do racismo.
BBC News Brasil – Mas
não estaria havendo, ao mesmo tempo, uma reação racista e ultraconservadora,
nos últimos anos, aos avanços no debate sobre racismo?
Moreira – As últimas eleições
presidenciais são um exemplo disso. O atual ocupante da Presidência disse
repetidas vezes durante a campanha que, se ele fosse eleito, negros e indígenas
não teriam direitos adicionais. E ele foi eleito em grande parte por causa
disso, pela defesa de uma política racial de exclusão de negros e indígenas de
qualquer forma de cidadania. E isso era exatamente o que parte da população
branca, especialmente da classe média branca, queria ouvir: ‘temos um candidato
comprometido com a manutenção do nosso status social privilegiado’.
Agora,
ao mesmo tempo em que temos essa reação conservadora de parte das elites
brancas aferradas ao sistema de privilégios, temos a iniciativa privada
implementando programas de ações afirmativas. Todos os grandes escritórios de
advocacia hoje estão se preocupando com promoção da igualdade racial. Muitos
fazem isso por pressão dos clientes internacionais, mas alguns tiveram
realmente iniciativa própria de refletir sobre a falta de sentido em ter um
escritório só com sócios homens, brancos, heterossexuais, de classe alta.
Pensaram: somos 5% da população brasileira e, portanto, não tem sentido
ocuparmos todas as posições de comando.
BBC News Brasil – O que
a sociedade brasileira ainda não entende sobre racismo e precisaria entender
para uma mudança efetiva?
Moreira – A sociedade brasileira
ainda não entende que o racismo não é apenas expressão pura de desprezo e ódio.
É um sistema de dominação social que tem como propósito garantir vantagens
competitivas para pessoas brancas. O racismo e o racismo recreativo têm o
objetivo de produzir diferenciações de status cultural e material entre pessoas
brancas e não brancas. O racismo se expressa para impedir que um grupo tenha o
mesmo nível de respeitabilidade que o grupo dominante. No dia em que a
sociedade ficar convencida de que pessoas negras podem desempenhar as mesmas
funções sociais que pessoas brancas, brancos vão deixar de ter acesso exclusivo
a certas funções sociais simplesmente por ser branco. E muitos não querem
perder esse privilégio.
Fonte: https://www.geledes.org.br/brancos-usam-humor-e-amigo-negro-para-perpetuar-discriminacao-diz-autor-de-racismo-recreativo/.
Acesso em 29/11/2021.
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