Assim começava o anúncio na edição de 20 de
janeiro de 1872 do Jornal do Commercio, que circulava no Rio de Janeiro.
"Crioula, moça, robusta, de boa vista, altura e corpos
regulares, feições alegres, olhos vivos e meio brancos, beiços meio grossos,
com falta de alguns dentes, cor não muito retinta, seios grandes, cabeça, corpo
e nariz pequenos, pés compridos, meio grossos e meio virados nas pontas para
dentro, tem um dos dedos da mão meio encolhido para dentro, sinais de bexiga
pelo rosto, os quais são meio pretos e pouco profundos. Estava pejada [grávida]
e com a barriga bastante crescida, demonstrando muita proximidade de dar à luz
(o que deve há muito ter acontecido)."
Felippa deixou a casa de seu
"senhor" cerca de um mês antes da promulgação da Lei do Ventre Livre,
que completa 150 anos neste 28 de setembro de 2021 e que tornou livres todos os
filhos de mulheres escravizadas nascidos após sua promulgação.
As escravizadas grávidas estavam sujeitas a
violências terríveis: a tortura, a exaustão pelo trabalho — que muitas vezes se
estendia até o dia do parto —, um resguardo mínimo, com frequência de apenas
três dias, a possibilidade de separação abrupta dos filhos recém-nascidos.
Não surpreende que, como Felippa, muitas
mulheres grávidas tentaram fugir.
Por muito tempo invisíveis, essas histórias
vêm sendo contadas por pesquisadores que buscam vestígios dessas personagens
nos registros históricos disponíveis.
Uma delas é a historiadora Lorena Féres da Silva Telles,
que mergulhou em arquivos de jornais publicados entre 1830 e 1888 e encontrou o
anúncio sobre Felippa — e outros 131 com o mesmo tema, a fuga de escravizadas
grávidas.
Os dados viraram substrato para sua tese de
doutorado e, em conjunto com informações colhidas de periódicos médicos e teses
das faculdades de Medicina, ajudaram-na a trazer à superfície a relação entre
maternidade e escravidão na cidade do Rio de Janeiro no século 19.
"Como é um tema sem uma fonte seriada,
o pesquisador tem que buscar fontes de naturezas diversas, de autoria muitas
vezes de 'senhores', homens brancos, com uma escrita com um teor extremamente
racista, objetificante com relação às mulheres", ela sublinha.
"A partir desses textos, você tenta
extrair a perspectiva delas. Os ecos através da documentação — esse é o ofício
da historiadora ali, né? Pegar fontes históricas, porque elas não escreveram a
próprio punho, e encontrar os projetos, os desafios, as experiências, as visões
de mundo, as atitudes, as agências delas."
A tese será transformada em livro, com
publicação prevista para 2022.
Dando
à luz no cafezal
Até o começo do século 20, a maioria
dos partos no Brasil era feita em casa, por parteiras ou pelas
"comadres", mulheres sem treinamento técnico, mas com grande
conhecimento empírico, que gozavam da confiança das mulheres de suas
comunidades.
"Isso valia tanto para as
'senhoras' quanto para as mulheres escravizadas; para as que moravam na cidade
ou nas fazendas", diz Cassia Roth,
professora de História da América Latina e Caribe na Universidade da Georgia,
nos EUA.
"Os médicos só eram chamados
quando havia algum problema", diz a pesquisadora, que há anos estuda o
tema, com uma pesquisa minuciosa em fontes como os Annaes Brazilienses de
Medicina e em documentos do Judiciário.
As semelhanças, contudo, paravam por
aí.
As mulheres escravizadas eram levadas
ao limite nos trabalhos forçados. Parte das evidências vem dos registros de
viajantes como o francês Charles Ribeyrolles, que em 1858 assistiu com
perplexidade mulheres grávidas prestes a dar à luz trabalhando na colheita de
café nas plantações do Vale do Paraíba.
Nessa mesma época, o médico Antonio
Ferreira Pinto escrevia que era comum que muitas entrassem em trabalho de parto
no serviço ou a caminho dele, com frequência carregando pesados cestos na
cabeça.
Ele narra o caso chocante de uma
escravizada que começou a sentir as dores do parto no cafezal, mas não
conseguiu chegar à senzala a tempo: teve o bebê sozinha, desmaiou, "quer
por perda considerável de sangue, quer assustada por se ver só", e acordou quando os porcos dilaceravam seu filho.
Telles pontua que, ainda que nas
cidades a realidade fosse diferente daquela das grandes propriedades cafeeiras,
não significa que a rotina fosse menos extenuante.
"O trabalho urbano também poderia
ser muito pesado — muitas tinham de carregar tinas de água."
As
lavadeiras, por exemplo, passavam longos períodos em pé, curvadas, o que lhes
inchava as pernas e pés e, às vezes, chegava a prejudicar o desenvolvimento do
útero.
"E mesmo os trabalhos considerados
menos pesados do ponto de vista do esforço físico eram também muito complicados
e difíceis, como o das mucamas e das costureiras, porque elas ficavam muito
cerceadas e reclusas dentro das casas e, ali, sujeitas a assédios, abusos e
violências por parte da 'senhora' e do 'senhor'", acrescenta a
historiadora.
Nesse sentido, o momento do parto também
poderia ser muito invasivo para essas mulheres.
Em muitos dos países de origem das mulheres
escravizadas — em Angola, por exemplo —, a experiência de dar à luz envolvia
posições e movimentos diferentes. As mulheres não costumavam cobrir o corpo e
os bebês passavam por uma série de ritos depois do nascimento.
Alguns desses costumes, ainda que com
restrições, tinham espaço nas áreas rurais do Brasil, onde o número de
escravizados em cada propriedade costumava ser maior. Como relata Roth, o mais
comum nesses casos era que os partos acontecessem nas senzalas e que as
mulheres fossem auxiliadas por outras escravizadas.
"Se você pensar em uma jovem africana,
de repente ela se vê na presença da 'senhora', que é uma mulher católica, que é
branca, que tem outra noção de parto. Pensar que essas mulheres têm o parto
desse jeito é extremamente violento, é uma violência em várias dimensões",
ressalta Telles.
Tanto nas fazendas quanto nas áreas
urbanas, o tempo de resguardo era mínimo. Os relatos de viajantes indicam que,
muitas vezes, elas estavam de volta ao trabalho apenas três dias depois de dar
à luz.
Como o
sistema escravista moldou a obstetrícia no Brasil
O século 19 marcou não apenas o último
capítulo da longa história do escravismo como instituição formal no Brasil.
Esse também foi um período em que a
ginecologia e a obstetrícia se consolidaram como campos da Medicina no país.
Nesse momento de transição, não era raro que os médicos
em formação praticassem nos corpos das escravizadas.
Roth disse não ter encontrado evidências de
que eles submetessem essas mulheres a experimentos científicos — como foi o
caso, nos Estados Unidos, de médicos como James Marion Sims, que usou mulheres
negras como cobaias.
"Não se pode dizer, a partir dos
documentos, se esse tipo de experimentação aconteceu ou não no Brasil. Mas
houve, sim, um outro tipo de experimentação que também é perversa… é horrível
ler esses relatos um após o outro", diz ela, referindo-se aos periódicos
médicos.
Um deles está citado em um trabalho recente
da historiadora — o capítulo de um livro ainda não publicado. Retrata uma
palestra em 1856 no auditório de anatomia da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, em que se apresentava o caso de uma "preta" sem nome que
morreu durante o parto.
O médico que assistiu a paciente, sem
prática no uso do fórceps (uma espécie de pinça usada para puxar o bebê quando
ele enfrenta dificuldade para sair), aplicou-o com tanta força que "se
rasgara a vagina e exercera-se uma compressão tão forte sobre o colo do útero que
esse se achava bastantemente equimosado". Após a "tortura", como
define a pesquisadora, a mulher morreu.
Nos relatórios dos obstetras que se
formaram na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, Roth encontrou
Henriqueta, que deu entrada na maternidade do hospital escola, aos 17 anos, em
20 de abril de 1884.
Um primeiro exame mostrou que o feto estava
em posição invertida, com os pés para baixo e cabeça para cima. Meia hora
depois, o bebê tinha girado quase 180 graus. O ventre de
Henriqueta foi apalpado por tantos alunos e por tantas vezes que o feto acabou
sendo involuntariamente deslocado. A filha da jovem nasceu
morta e Henriqueta passou outros três meses no hospital até se recuperar de uma
infecção.
Boa parte desses casos tem um denominador
comum: a ideia de que as mulheres negras tinham um
nível de tolerância maior à dor.
Esse pensamento se espalhou entre a
comunidade médica do século 19, na esteira das teorias raciais e do racismo
científico, mas transborda esse período.
"Acho que a ideia de que as mulheres
negras suportam mais dor ainda existe na profissão médica no Brasil. A mesma
coisa nos Estados Unidos", ressalta Roth.
"É preciso ter cuidado para não
estabelecer necessariamente uma causalidade, mas definitivamente é possível
enxergar paralelos e ver como a instituição da escravidão afetou e moldou a
profissão da obstetrícia no Brasil", completa a pesquisadora, que trata
desse assunto no livro A Miscarriage of Justice Women's Reproductive Lives and
the Law in Early Twentieth-Century Brazil ("Um Erro da Justiça: A Vida
Reprodutiva das Mulheres e a Legislação do Brasil do Início do Século 20",
em tradução livre), publicado em 2020 pela editora Stanford University Press.
As
mães escravizadas e os bebês brancos
A abolição da escravatura em 13 de
maio de 1888 foi o último capítulo da morte lenta do regime escravista no
Brasil. Antes da Lei Áurea, um conjunto de leis abolicionistas já vinha sendo
instituído no país, a conta-gotas.
Houve a proibição do tráfico negreiro
em 1850, que acabou com os desembarques nos portos brasileiros de africanos
sequestrados, e, em 1871, a Lei do Ventre Livre, que considerava libertos todos
os filhos de mulheres escravizadas nascidos após sua data de promulgação.
Essa implosão lenta do regime
escravista brasileiro teve efeitos colaterais perversos para as mulheres
escravizadas.
Um deles se abateu sobre o
"mercado" de amas de leite que há décadas dava lucro aos
"senhores" em cidades como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife.
Mães escravizadas eram
tradicionalmente alugadas para amamentar os filhos de mulheres brancas de
classe média e alta, que raramente davam de mamar aos próprios bebês.
Por quê?
A resposta está no discurso médico da
época, que dizia que "a mulher branca é frágil, é linfática, é
inconstante, é nervosa, tem o leite 'fraco'", explica Telles.
"E se dizia exatamente o oposto
complementar para a mulher negra: elas são fortes, robustas, conseguem
amamentar mais de uma criança ao mesmo tempo, têm muito leite, seus filhos não
precisam de tantos cuidados assim."
Esse "mercado" acabou se
tornando extremamente lucrativo depois da proibição do tráfico. Com a redução
do número de escravizadas urbanas, o valor pago pelas amas de leite entrou em
trajetória crescente.
"E aí entra um traço muito
cruel: as classes médias e as elites preferem pagar o dobro ou o triplo do
preço da mulher escrava sem o seu bebê", relata Telles.
Assim, muitas mães eram separadas —
temporária ou permanentemente — dos recém-nascidos para que os bebês brancos
não disputassem atenção com seus filhos.
Antes da Lei do Ventre Livre, os
"senhores" tinham um incentivo econômico para manter os
recém-nascidos vivos, já que eles nasciam escravos e, nesse sentido,
representavam-lhes ganhos potenciais no futuro.
"Depois de 71, quando as
crianças não vão ser mais escravizadas, elas começam a ser largadas na rua, nas
praias, na Roda dos Expostos."
A historiadora conta que muitas
parteiras — no caso do Rio de Janeiro, muitas de origem francesa — se
especializaram no que acabou virando um filão dos estertores do mercado
escravista: elas faziam os partos das mulheres escravizadas em suas próprias
casas, chamadas de "casas de maternidade", e já se encarregavam de
sumir com os bebês e alugar as mulheres.
O número de crianças na Roda dos
Expostos, também conhecida como roda dos enjeitados — ligadas às igrejas e
instituições de caridade, que recebiam recém-nascidos abandonados — cresceu
substancialmente nessa época.
O
destino de Felippa
A revolta das mulheres escravizadas aparece
em histórias como a de Felippa, nos registros de fugas nos jornais.
"Uma mulher que foge grávida de oito,
nove meses, de repente ela já sabe do plano do senhor de alugá-la como ama de
leite", ilustra Telles.
"Então elas decidem fugir tanto pela
questão da sobrevivência dos filhos, para deixá-los com alguma comadre, com
alguém que zele pela sobrevivência deles, quanto para não serem torturadas ou
mesmo para poderem viver o parto de uma forma que elas julgassem mais
apropriada."
Nesse sentido, a rede de solidariedade que
existia entre as mulheres era fundamental.
"Essas mulheres têm comadres, elas
andam pelas ruas. A concentração africana e afrodescendente na cidade do Rio de
Janeiro é fortíssima. Tem ainda os 'zungus', que são casas de batuque e também
de alimentação… toda uma rede que o mundo urbano permite que exista, e que é
onde elas vão se amparar e tentar encontrar maneiras menos adversas para viver
o parto e o pós-parto."
No caso de Felippa, registros do Jornal do
Commercio de 1874 mostram que, depois de dar à luz, ela entrou com uma ação de
liberdade na Justiça reivindicando sua alforria.
A "secção judiciária" do jornal O
Globo de 16 de maio de 1875 informa, contudo, que o pedido
foi negado.
Fonte:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/09/28/lei-do-ventre-livre-como-as-mulheres-escravizadas-davam-a-luz-no-brasil.ghtml.
Acesso em 28/09/2021.
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