“Joguei do alto do terceiro andar, quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida”¹

 

A trabalhadora doméstica Raiane Ribeiro da Silva, 25 anos, mulher negra jovem que sofreu agressão e foi mantida em cárcere privado em um bairro nobre da cidade de Salvador, precisou pular do terceiro andar do prédio onde trabalhava para se livrar das agressões de uma patroa. Não dá para descrever o sofrimento físico e emocional que fez essa trabalhadora jogar-se de um prédio para se libertar da violência que vivenciou no local de trabalho, mas é necessário refletir sobre o que isso significa em nossa sociedade. Lembremos, este não é um caso isolado! O histórico de violência contra as profissionais trabalhadoras domésticas faz parte de uma realidade já bastante conhecida da história de um Brasil com memórias escravocratas.

A prática do trabalho doméstico remonta a um período de mais de 300 anos de escravização Brasileira, de bases racista e patriarcal, que mesmo após a abolição em 1988, continua mantendo viva uma tradição de exploração e violências simbólicas no seio da sociedade — ainda que com rotinas diárias diferentes e com avanços na legislação trabalhistas —, mantém práticas atuais de violências diversas. Realidades como a vivenciada por Raiane e pelos rescentes casos de três trabalhadoras domésticas resgatadas em situação análogas à escravidão, também em bairros de classe média de Salvador, acabam por denunciar uma abolição mal acabada, que subjugou a população negra, e sobretudo as mulheres, ao subemprego e expostas a vulnerabilidades diversas, sendo empurradas ao trabalho doméstico, para ingressarem mais facilmente no mercado de trabalho, como uma alternativas na luta pela sobrevivência, principalemnte, na informalidade, que precariaza o trabalho, propiciando as práticas de violências.

O atual momento histórico de pandemia e de crise econômica, sob um desgoverno antipopular e genocida, é mais que oportuno para voltarmos a refletir sobre a situação de vulnerabilidade que ainda vivem essas mulheres. Não à toa, o segundo caso do coronavírus (Covid-19) registrado no Brasil foi de uma mulher trabalhadora doméstica, Cleonice Gonçalves, por ter tido contato com seus patrões que testaram positivo para a covid-19, antes de Cleonice ser infectada. Esses casos revelam, entre outras coisas, às extrema vulnerabilidade que estão expostas essas mulheres, reflexo das desigualdades estruturais de raça, gênero e classe que afetam as relações do trabalho doméstico, nos convidando a incitar o debate e impulsionar ações de ordem prática de combate à exploração paralelamente ao enfrentamento ao racismo e do sexismo presentes na sociedade. 

O combate à exploração e violência no trabalho doméstico é um debate tão atual quanto necessário sobre reparação de injustiças sociais que afetam majoritariamente as mulheres negras. O movimento social e, sobretudo, o movimento sindical das trabalhadoras domésticas no Brasil, iniciado por Laudelina de Campos Mello, vem há mais de oitenta anos pautando a igualdade de direitos trabalhistas e denunciando casos como o de Raiane e tantas outras mulheres.  

É necessário ressignificar social e economicamente o trabalho doméstico de modo que essa profissão não mais seja alvo de tais violências e para que se possa ampliar e garantir os direitos trabalhistas e previdenciários de mulheres e homens que fazem do trabalho doméstico a sua profissão, ocupação ou meio de sobrevivência. Essa é uma demanda de toda a sociedade para a garantia da dignidade da pessoa humana e pelo respeito aos direitos constitucionais.

¹ Música de Elza Soares, Mulher do Fim do Mundo. Composição de Romulo Fróes e Alice Coutinho.

Fonte: https://www.geledes.org.br/joguei-do-alto-do-terceiro-andar-quebrei-a-cara-e-me-livrei-do-resto-dessa-vida%c2%b9/. Acesso em 14/09/2021.

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