O que a Segunda Guerra Mundial tem a ver com a Paralimpíada?
Bem… Tudo.
Antes da Segunda Guerra Mundial, quando soldados
voltavam feridos da guerra, seu destino era desventuroso.
Pessoas com lesões na medula espinhal muitas vezes morriam dentro de um ano após sofrerem os danos, sem terem tido a esperança de uma recuperação.
"As pessoas eram colocadas num leito de hospital, atrás de cortinas fechadas e deixadas ali para perecer", diz à BBC News Brasil Ian Brittain, professor do Coventry Business School, no Reino Unido, e especialista em esportes paralímpicos.
Os soldados
com lesões na medula espinhal morriam por lesões por pressão que levavam a
choques sépticos ou falência dos rins - um reflexo do pouco conhecimento médico
da época.
Além disso,
antes da Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido não estava preparado para a
quantidade de leitos de hospitais de que precisaria com um conflito daquele
calibre. Com uma alta mortalidade, médicos tampouco tinham oportunidade para
aprender como tratar essas lesões.
Um médico
britânico, no entanto, adquiriu experiência durante a Primeira Guerra Mundial.
Ao lado de outros médicos, o neurologista George Riddoch defendeu que soldados
com lesões ortopédicas ou na espinha deveriam receber tratamento especializado,
em unidades especiais criadas só para eles.
"A
Segunda Guerra Mundial exerceu um enorme papel na criação dos Jogos
Paralímpicos", diz o historiador de esportes Cobus Rademeyer, da
Universidade Sol Plaatje, na África do Sul.
"Mas,
indiretamente, a Primeira Guerra Mundial também foi importante. Raddoch
identificou problemas no tratamento de pacientes durante a Primeira Guerra e
não queria repeti-los na Segunda."
Com o advento
da Segunda Guerra Mundial, o mundo viu muitos soldados e civis feridos por bala
ou estilhaços de balas. Mas o conhecimento médico havia avançado um pouco. A
descoberta dos antibióticos sulfanilamida e penicilina deu sobrevida a quem, em
outras ocasiões, teria morrido.
Além disso,
desta vez, o Reino Unido tomou medidas para se preparar militarmente, mas
também do ponto de vista médico, liberando leitos para tratar os feridos.
Enquanto isso, Riddoch tentava estabelecer unidades especializadas.
A ele é
atribuída uma decisão que mudaria os rumos da reabilitação dos pacientes com
lesões na medula espinhal - e o subsequente nascimento da Paralimpíada.
Stoke Mandeville
Em 1943, Riddoch
indicou um experiente neurologista chamado Ludwig Guttmann para chefiar um novo
centro nacional para lesões espinhais no Reino Unido, o Hospital Stoke
Mandeville, na cidade de Aylesbury, a 100 km de Londres.
Nascido na
Alemanha em 1899, Guttmann havia fugido da opressão nazista contra a comunidade
judaica e emigrado para Oxford, no Reino Unido, em 1939.
Ali, ele
trabalhou em uma enfermaria militar inglesa para ferimentos na cabeça.
Guttmann
aceitou o convite, mas pediu que pudesse tocar o centro da maneira como ele
quisesse. O hospital começou como um local de tratamento para militares
ingleses que retornavam da Segunda Guerra Mundial com ferimentos.
O
neurologista primeiro implementou o procedimento de virar pacientes a cada duas
horas para que eles não tivessem mais lesões por pressão. Depois, introduziu
atividade física como um caminho fundamental para a reabilitação dos pacientes.
Ele tinha três argumentos para tanto: a atividade
física por meio do esporte era uma maneira natural para fortalecer o tronco e
os membros superiores de uma pessoa paraplégica, por exemplo, que precisaria
estar forte para mover suas cadeiras de roda.
Em segundo lugar, o esporte era bom para o bem-estar
físico e mental dos pacientes.
"Se não fosse divertido, não iria para
frente", diz Brittain.
Por último, o esporte era um caminho para a
integração social.
O primeiro esporte eleito por Guttmann ilustra bem
essa última ideia. Era tiro com arco. "Se um paciente fosse para o Stoke
Mandeville e praticasse tiro com arco, ele poderia voltar para casa e se
inscrever em um clube para pessoas sem deficiência, competindo da mesma
distância que elas", diz Brittain.
As pessoas foram encorajadas a experimentar também
atividades como polo em cadeira de rodas e basquete em cadeira de rodas.
Em 1948, Guttmann organizou uma competição para 16
homens e mulheres com algum tipo de lesão. Foram os Jogos Stoke Mandeville para
atletas em cadeiras de rodas. E a competição foi organizada para coincidir com
a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 1948 em Londres.
Na época, diz Brittain, o que o neurologista estava
fazendo era lutar contra um establishment que não estava interessado em deficiência.
Até então, o esporte já tinha sido usado como forma
de reabilitação em pequenos bolsões. Na Primeira Guerra Mundial, um centro de
reabilitação na Inglaterra focou no uso da atividade física para veteranos
deficientes visuais. Em 1932, nasceu também no Reino Unido a Sociedade de
Golfistas com Um Braço.
"Mas nenhuma dessas iniciativas eram um esforço
concentrado como o de Guttmann, que depois virou competições que viajaram para
além de um só local", diz o especialista.
No
segundo Jogos Stoke Mandeville, em 1949, o número de atletas cresceu para 37.
Além de tiro com arco, a competição incluiu também o netball, um jogo parecido
com basquete.
"E eu não sei se ele era um louco ou um
visionário. Mas naqueles jogos, Guttmann disse que um dia haveria Jogos Olímpicos
para pessoas com deficiência. É algo incrível de se dizer quando só havia 37
pessoas competindo", diz Brittain.
Ele ressalta, no entanto, que nada disso seria
possível sem a personalidade dogmática e até ditatorial do médico.
"Ele era ambicioso, insistia nisso",
afirma.
E, claro, sem o engajamento, esforço e dedicação dos
atletas. E também de uma mulher bastante importante - Joan Scruton, que começou
como assistente de Guttmann, mas se tornou seu braço direito e, eventualmente,
secretária-geral dos jogos entre 1975 e 1982.
A visão de Guttmann, como sabemos, foi concretizada.
A cada ano, novos esportes eram adicionados à
competição. A primeira equipe de fora veio de um centro de reabilitação na
Holanda, em 1952, dando à competição um caráter internacional.
O neurologista, diz Brittain, viajava pelo mundo para
treinar médicos como neurocirurgiões, e tentava divulgar suas atividades para
onde ia.
Também desafiava os países a levarem suas próprias
equipes de atletas com deficiência para os jogos em Stoke Mandeville.
Em 1959, quando estava em uma conferência na Itália,
conheceu o diretor de um centro de reabilitação e o convenceu a sediar os jogos
em Roma - onde os Jogos Olímpicos aconteceriam no ano seguinte.
E, assim, em 1960, os jogos para atletas com deficiência
aconteceram junto da Olimpíada de Roma.
Mas houve problemas. A vila dos atletas não era
totalmente acessível para cadeiras de rodas, e militares tiveram de carregar
atletas para cima e para baixo de escadas. À medida que o movimento crescia, a
acessibilidade também ia sendo melhorada.
De qualquer forma, aquele havia sido o início oficial
da Paralimpíada - que, aliás, se chamava assim como uma referência a
"paraplégicos" e porque Guttmann constantemente fazia referência aos
Jogos Olímpicos, explica Brittain.
Em 1976, com a inclusão de outras deficiências, o
prefixo "para" passou a simbolizar "paralelos". Hoje,
Paralimpíada significa jogos olímpicos paralelos.
E não é a primeira vez que são sediados no Japão.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-58346138. Acesso em 02/09/2021
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