Não é só o tempo de uma geração
que separa ambos. Pode-se dizer que ambas as figuras estão em pontos diametralmente
opostos do espectro polÃtico ideológico: se Lamarca, feito guerrilheiro contra
a ditadura, tornou-se um Ãcone da esquerda revolucionária, Bolsonaro representa
o conservadorismo da extrema-direita.
De forma reiterada ao longo de
sua carreira polÃtica, Bolsonaro já repetiu que teria se impressionado com os
relatos da caçada, pelos militares a serviço da repressão, ao guerrilheiro e
seus companheiros. E que isso teria influenciado inclusive a sua vocação
militar.
O cruzamento dessas
biografias ocorreu pontualmente em 8 de maio de 1970. Foragido e extremamente
procurado, Lamarca refugiou-se na pequena cidade de Eldorado Paulista, a 180
quilômetros de São Paulo. Uma operação militar foi deflagrada para capturá-lo.
Houve tiroteio — o saldo foi um policial morto.
Lamarca fugiu. Mas a
operação montada, com estradas interditadas, monitoramentos generalizados e
revistas em toda parte, impressionou aquele estudante de 15 anos chamado Jair.
Conforme ele mesmo já declarou: foi naquele dia que decidiu que iria se alistar
no Exército. Ironicamente, tornaria-se capitão — mesma patente do seu antÃpoda
guerrilheiro.
Herói ou vilão
Apropriado
pela esquerda como um herói e tachado pela direita de vilão, quem afinal foi
Carlos Lamarca?
"Para
entender essa dinâmica, é preciso antes distinguir memória de história",
argumenta a historiadora Juliana Marques do Nascimento, pesquisadora da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
"Memória
é uma imprecisão graças à sua relação com o presente e também com sentimentos,
ideologias. Por isso, para as esquerdas, especialmente as alas mais
progressistas, as memórias sobre Lamarca tendem a ser mais positivas,
idealizadas. Enquanto para a direita, essas memórias são repulsivas, aliadas ao
pensamento de direita da época", pondera ela.
"Já a
história, a historiografia, tem uma pretensão cientÃfica de olhar para o
passado, por isso usa métodos bem formulados, para que seja uma ciência. Ela é
mais objetiva, embora não esteja isenta de subjetividade", acrescenta.
"A história enxerga Lamarca como fruto de seu tempo: foi de fato uma
pessoa com pensamentos inclinados mais para as ideias de esquerda, embora ele
fosse originalmente das bases das Forças Armadas."
Ela frisa que
o personagem foi "completamente avesso ao golpe civil-militar de
1964", demonstrava "profundo incômodo com o cenário polÃtico" e
arquitetou uma "organização mais atuante, tanto na oposição ao novo
regime, quanto na luta pela construção do socialismo no Brasil".
A pesquisadora
atenta que "a historiografia não é alheia e não nega as violações dos
direitos humanos perpetrados pela ditadura". Mas reconhece que o grupo de
Lamarca não conseguiu chegar às camadas populares.
"A
trajetória polÃtica dele e a liderança entre as esquerdas revolucionárias são
fatos inegáveis. Mas é importante ressaltar que essa imagem de lÃder, de figura
polÃtica proeminente, não chegou à s massas populares, que eram seu alvo. A
ditadura foi bem sucedida na blindagem da informação que não fosse de interesse
do governo", explica Nascimento.
"Lamarca foi um lÃder para as
esquerdas revolucionárias que pouco ou nada atingiram as camadas populares. Foi
um lÃder para um nicho muito especÃfico no Brasil da ditadura. E se tornou
vÃtima da ditadura: foi assassinado por suas ideias polÃticas", afirma.
Ela frisa, contudo, que no
discurso de Lamarca a volta da democracia não era uma questão aventada.
"Seus escritos não nos deixam esquecer. Eles não pretendiam a mera volta
de uma democracia liberal como a que estava instaurada antes da ditadura",
diz. "Mas, sim, o rompimento com a estrutura capitalista, por meio da
implementação do socialismo pela via revolucionária. Não tem nada de
pacifico."
Para o historiador Victor
Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e PolÃtica nas Américas, da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano
Mackenzie BrasÃlia, é preciso considerar que a sedimentação do tempo acabou
cristalizando uma imagem de diversos personagens do perÃodo da ditadura.
Após a redemocratização,
guerrilheiros passaram a ser vistos como "gente que lutava pela
democracia" — o que não correspondia exatamente aos objetivos desses
grupos. "Uma parte da esquerda nos últimos anos transformou a trajetória
deles militantes. A maioria defendia a revolução enquanto projeto social e não
necessariamente a democracia", contextualiza Missiato.
"É muito questionável
[classificarmo-los] como lÃderes de uma verdadeira democracia ou responsáveis
pela recondução da democracia brasileira", pondera. "Durante muito
tempo, esses guerrilheiros eram vistos como sujeitos revolucionários, e não
atores pela democracia"
"A apropriação de Lamarca
e de outros passa por duas fases: na primeira, como um guerrilheiro a la Che
Guevara. Atualmente, como um daqueles que lutaram contra a ditadura e defendiam
uma verdadeira democracia", complementa. "Isso vem sendo reconstruÃdo
pela historiografia mais vulgar, enquanto a mais acadêmica trata dele como uma
figura mitológica."
Tenente-coronel da reserva da
PolÃcia Militar do Estado, o historiador Sérgio Marques defende que sejam
lembradas "as vÃtimas que morreram nas mãos da esquerda" e
"acabaram sendo jogadas para debaixo do tapete, como se não
existissem". "A respeito desse perÃodo turbulento do Brasil, houve
atentados aos direitos humanos de ambos os lados", acredita ele.
Marques também questiona a
versão de que os guerrilheiros lutavam pela democracia. "Isso é uma
falácia, uma mentira. Todos os documentos de todos os grupos revolucionários,
ninguém falava em democracia, não existia nada a respeito dessa questão. Eles
pretendiam substituir a ditadura existente no Brasil por uma ditadura do
proletariado, ora modelo cubano, ora modelo soviético ou chinês", afirma.
"Lamarca é um homem do tempo dele,
um tempo do ápice da Guerra Fria, a oposição entre os sistemas capitalista e
socialista", prossegue Marques. "Ele ganhou prioridade aqui no Brasil
porque foi o homem de maior patente que pegou em armas. Mas não lutava pela democracia,
e sim pela construção de um estado voltado para a ditadura do
proletariado."
O jornalista e ex-deputado
federal Emiliano José, que na ditadura foi perseguido, preso e torturado,
publicou, em parceria com o também jornalista Oldack de Miranda, a biografia 'Lamarca:
O Capitão da Guerrilha'.
Para ele, o guerrilheiro
"ficará na história como um dos heróis da resistência". "Isso é
inegável, queiram ou não seus adversários, exatamente os saudosos da ditadura
ou aqueles que eventualmente tenham participado dela", diz. "Aqui não
há dois lados: Lamarca foi um dos grandes combatentes da ditadura."
Nascido em uma famÃlia simples
do Rio de Janeiro, com pai sapateiro e mãe dona de casa, Carlos Lamarca foi um
adolescente que defendia pautas nacionalistas — como a campanha "o
petróleo é nosso" — e encantou-se com 'Guerra e Paz', do escritor russo
Leon Tolstoi (1828-1910).
Aos 17 anos alistou-se na
Escola Preparatória dos Cadetes. Depois, foi para a reputada Academia Militar
das Agulhas Negras, em Resende. Desde cedo destacava-se como bom atirador.
Segundo registros, costumava vencer torneios militares de tiro.
Escalado para integrar um dos
20 contingentes do exército brasileiros do chamado Batalhão Suez — que atuaram
na Força de Paz da Organização das Nações Unidas na região de Gaza —, Lamarca
ficou 18 meses no Oriente Médio, a partir de 1962. Foi nessa época que passou a
flertar com ideias socialistas.
Já de volta ao Brasil, Lamarca
passou a atuar, dentro do Exército, na formação de grupos de esquerda, mesmo
após o golpe que instaurou a ditadura em 1964. Foi um dos primeiros a integrar
o grupo de extrema-esquerda Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). No fim de
1968, ele esteve com o também guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969),
cofundador do grupo Ação Libertadora Nacional (ALN).
"Lamarca tinha o sonho de
ser militar, desde menino. E foi um excelente militar. Só que viu que o
Exército brasileiro, inegavelmente, serviu sempre a 'casa grande', aos
interesses das classes dominantes do Brasil", comenta Emiliano José.
"Ele carrega essa
singularidade: de ter sido um excelente militar. Mas entendeu que nesse
Exército ele não podia mais continuar. Aà jogou tudo pelos ares e foi à luta
armada, para enfrentar a ditadura", diz ainda José.
Em janeiro de 1969, Lamarca entrou para a
clandestinidade. Desertou do Exército, acompanhado de um sargento, um cabo e um
soldado. Numa Kombi, subtraÃram ainda das Forças Armadas 63 fuzis, três
metralhadoras e munições.
Sua vida então passou a se
organizar em refúgios organizados por companheiros, normalmente apartamentos
discretos em que ele se enclausurava — os chamados "aparelhos".
Apaixonou-se pela militante Iara Iavelberg (1944-1971), do Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e eles passaram a viver um relacionamento.
Seus disfarces não se resumiam aos paradeiros desconhecidos. Lamarca se
submeteu, em junho de 1969, a uma plástica no nariz.
No mesmo ano, seu grupo
guerrilheiro experimentou uma fusão com o Comando de Libertação Nacional
(Colina), resultando no Vanguarda Armada Revolucionária Palmares
(VAR-Palmares), que teve entre seus quadros a depois presidente Dilma Rousseff.
Depois de um ano de preparação
teórica, com muitas leituras e debates, o grupo de Lamarca se embrenhou pelas
matas do Vale do Ribeira, no interior paulista. A ideia era utilizar o local
como local de treinamento para a guerrilha armada.
Informado do que se passava, o
Exército enviou 2,5 mil homens à região de Registro, em 21 de abril. A operação
foi cinematográfica, com helicópteros esquadrinhando a mata, bloqueios de
estradas, 120 detidos e até um avião da Força Aérea bombardeando pontos
suspeitos.
Lamarca e seus companheiros
conseguiram fugir, mata adentro. Dos 17 do grupo inicial, dois foram presos e
oito se misturaram à população. O ex-capitão tinha apenas seis junto a ele. Foi
esse grupo que acabou protagonizando o ocorrido em Eldorado Paulista em 8 de
maio daquele ano — o noticiário destacava cada passo, sempre com uma narrativa
favorável aos militares. Isso entusiasmava jovens como Bolsonaro.
"O atual presidente, ele
carrega uma frustração profunda de não ter podido ser um dos torturadores da
ditadura. Ele revela isso permanentemente, ao nomear seus Ãdolos", diz
Emiliano José. "Ele queria como menino ter combatido o Lamarca, mas é tudo
fantasia dele [qualquer eventual participação na caçada]. Não se dá importância
às fantasias e frustrações profundas dele não ter estado naquele tempo como um
torturador, um carrasco. Não era possÃvel, até pela idade, tudo."
Depois de capturar policiais
militares, Lamarca conduziu um acordo — libertando-os em troca da reabertura da
estrada. Nessa fuga, os guerrilheiros mataram um tenente policial militar, que
era feito como refém.
O cerco de 41 dias acabaria de
uma maneira inesperada. Em 31 de maio, armados, Lamarca e os companheiros
remanescentes decidiram tomar um veÃculo que passasse na estrada para fugirem.
Renderam cinco soldados que trafegavam em um caminhão do Exército, deixaram-nos
só de cuecas e, usando seus uniformes, passaram incólumes pelas barreiras. Na
mesma noite, o veÃculo foi abandonado na Marginal do Tietê, em São Paulo.
O episódio transformou Lamarca
no homem mais procurado do paÃs. Para Emiliano José, toda essa "manobra
espetacular" pode ter sido o que desencadeou sua fama de uma espécie de
Che Guevara brasileiro. Mas o biógrafo ressalta que essa comparação não é
precisa. "Chamá-lo de Che é parte dos clichês da imprensa mundial, porque
Che se transformou em uma figura pop, um pop star. Mas não cabia isso [esse
tipo de comparação]", diz.
Sua próxima aventura seria o sequestro
do embaixador da SuÃça no Brasil, Giovanni Bucher (1913-1992), em 7 de dezembro
de 1970. Na ação, um agente federal que atuava na segurança da embaixada foi
morto a tiros por Lamarca.
No inÃcio do ano seguinte, o
guerrilheiro saiu da VPR e passou a integrar o mesmo MPR-8 de sua amante
Iavelberg. Depois de meses confinado com ela em um "aparelho" no
Largo do Machado, no Rio, Lamarca partiu para o que seria o começo de sua
vislumbrada guerrilha rural, no interior da Bahia.
Baseado na região de Buriti
Cristalino, a 590 quilômetros de Salvador, ele escreveu muitas cartas para
Iavelberg — e foi por meio dessas cartas, interceptada pela polÃcia, que seu
paradeiro acabaria descoberto.
A operação foi montada pelo
Doi-Codi baiano, que recrutaria 215 homens das três forças armadas, além de
agentes federais, policiais do Dops e da PolÃcia Militar da Bahia.
Depois de 20 dias de uma caçada
em que Lamarca se deslocou por mais de 300 quilômetros pela mata, às 15h do dia
17 de setembro, o guerrilheiro foi encontrado descansando sob uma árvore em
Pintada, um povoado no municÃpio de Ipupiara. Foi morto com sete tiros.
"A forma como ocorreu o
assassinato é bem emblemática", comenta a historiadora Nascimento.
"Ele estava desolado, desnutrido, cansado. Foi localizado sem
possibilidade de revide."
Mito
Mas é a própria polarização
politico-ideológica da sociedade brasileira que deixa uma figura como Lamarca
em proeminência. Se sua trajetória póstuma foi reconstruÃda pela
redemocratização, sob os escombros dos porões da ditadura, o fato de ele ser
recuperado como sÃmbolo antagônico pelo atual presidente Bolsonaro garante a
sobrevivência do mito.
"O mito polÃtico não se
baseia na razão, mas numa lógica afetiva. Não há neutralidade: ou você está a
favor ou contra ele", diz o historiador Zenir Rodrigues dos Anjos Filho,
que em 2003 defendeu, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), a
dissertação de mestrado 'Carlos Lamarca: Significação, MÃtica e História'.
"O mesmo argumento que
coloca o mito como herói, coloca-o como bandido. O Lamarca é herói e é bandido.
Ele sintetiza uma tragédia: se você procurar seus partidários, irão
interpretá-lo como herói; adversários vão chamá-lo de demônio", explica.
Nesse sentido, os sete tiros
não serviram para matar Carlos Lamarca. Porque mitos resistem à morte.
"Todos os mitos ressuscitam", diz Anjos Filho. "Todos vencem a
tragédia, e no caso de Lamarca isso ocorreu com o fim do regime militar."
E se a releitura dele estava já
meio esquecida no imaginário, o fato de seu nome ter sido trazido à tona nos
últimos anos pela biografia do atual presidente contribui para incensá-lo
novamente. Porque, segundo Anjos Filho, "um mito só morre quando deixa de
fazer sentido". "Ele se alimenta do oposto, do negativo. Se você
tentar destruir um mito, você vai construÃ-lo cada vez mais", diz.
Para o historiador Victor
Missiato, o mito Carlos Lacerda é calcado pelo fato peculiar de ele ter sido um
"militar desertor" que teve "vitórias importantes enquanto
guerrilheiro em ações contra bancos e também contra o Exército". "Ao
longo do tempo, essas histórias foram construÃdas como a de alguém que
desafiava a ordem autoritária, lutando por um ideal", pontua.
Mas ele mesmo ressalta que a
historiografia "é um eterno campo de conflitos". "Com a ascensão
de campos de direita ao poder, houve embates a uma certa leitura cristalizada
que predominou entre os anos 1990 a inÃcio de 2000. Nesse sentido, podemos
encaixar Lamarca como vilão e como herói", comenta. "Isso vai
enriquecendo a figura do personagem, porque se de um lado ele é visto de uma
forma e de outro, de forma diferente, as novas pesquisas vão enriquecendo sua
biografia. Quem quiser fazer uma análise mais ampla consegue ter mais
informações."
"Nos últimos anos,
sobretudo nos governos Dilma Rousseff e, agora, Jair Bolsonaro, houve
tentativas, a partir de vitórias eleitorais, de reinterpretar a história
daquele momento", diz o historiador, lembrando do passado de Rousseff como
guerrilheira e a carreira militar do atual presidente do Brasil. "Com
Bolsonaro, é mais forte ainda, quando ele ressalta um papel de capitão do
Exército que não corresponde à sua trajetória dentro do Exército."
O historiador se refere ao fato
de que a carreira militar de Bolsonaro foi curta e marcada por polêmicas.
Documentos do próprio Exército, produzidos nos anos 1980, ressaltam que ele era
avaliado por superiores como alguém com "excessiva ambição em realizar-se
financeira e economicamente", além de ser visto como dono de temperamento
agressivo. Em 1986, ele chegou a ser preso por 15 dias. Em 1988, foi para a
reserva — a partir de então, empreenderia uma carreira polÃtica.
Frisando que foram três vÃtimas fatais
das atividades de Carlos Lamarca, o historiador e militar Sérgio Marques afirma
que ser chamado de "Che Guevara brasileiro" não deve ser motivo de
orgulho. "Porque Che Guevara era um homem que matava pessoas, infringia direitos
humanos, não respeitava valores humanitários", acusa.
"Mas a figura de Lamarca
acabou sendo tomada pela esquerda como uma grande referência. Evidentemente,
ele tinha um ideal. Se era certo ou errado, isso é outra coisa. Mas ele era um
idealista, acreditava naquilo que fazia", considera. "No meu modo de
ver, não é correto pegar em armas e matar outras pessoas."
Emiliano José, seu biógrafo de
primeira hora, ressalta que Lamarca é "parte da história brasileira e,
inegavelmente, um grande sÃmbolo de todos os que tombaram ao longo da caminhada
na luta contra a ditadura", dentre os "covardemente
assassinados" pelas forças repressoras.
"Podemos e devemos
analisar os equÃvocos de sua trajetória, mas isso, esses caminhos trilhados
durante a luta, só são possÃveis de serem reconhecidos muito à frente, com os
anos já passados", pondera José. "Fato é que ele se revoltou contra a
ditadura, as mortes, as torturas e os desaparecimentos de pessoas, quadro
patrocinado sobretudo pelo Exército brasileiro, pelas Forças Armadas."
"Seu lado, o do
combatente, do sujeito indignado frente aos crimes da ditadura, esse lado
ninguém poderá apagar jamais. Compõe a história do Brasil", afirma.
"É inegável que as classes dominantes tentem tratar [personagens assim]
como bandidos. Mas não há como. A ditadura foi um regime de terror e morte. E
eu sei o que é isso, como sobrevivente, porque passei quatro anos em uma prisão
e fui torturado."
Emiliano José ressalta que 50
anos, para a história, é muito pouco. Portanto, a biografia de alguém como
Carlos Lamarca permanece "em construção" — não à toa, seu livro, cuja
primeira edição data de 1980, já teve outras 17 edições, todas com muitas
alterações e ampliação de conteúdo.
Para a historiadora Nascimento,
é preciso relativizar: "as memórias das esquerdas sobre a ditadura
civil-militar tendem a ser mais simpáticas aos opositores, apesar disso a gente
tem de ressaltar que as organizações revolucionárias de luta armada têm
constantemente os seus objetivos e suas estratégias desvirtuadas pelos
discursos memoriais".
"Lamarca parece ser muito
importante para as esquerdas atuais, mas seus pensamentos e convicções são
apagados do processo", acrescenta ela.
"Para os mais
progressistas, ficou a imagem do capitão que queria romper com sua vida legal,
sua famÃlia, sua carreira, em nome de uma luta contra a ditadura. Há um
apagamento do lado mais radical de Lamarca, isso porque ainda que dentro das
esquerdas, o radicalismo, a tentativa de revolução, quando colocada em prática
de fato, e a implementação do socialismo pela via revolucionária, são
consideradas táticas violentas demais", afirma.
Nascimento diz que "para
as esquerdas atuais", a biografia de Lamarca assume aspectos "mais
brandos". "Um 'Che Guevara' menos revolucionário, com o único e digno
objetivo de pôr fim ao regime autoritário, libertar a população brasileira
reinstaurando a democracia como ela era conhecida antes", explica.
"Não era o que de fato Lamarca pretendia."
"Por muitos anos a
narrativa de memória hegemônica sobre a ditadura foi advinda principalmente das
esquerdas liberais, que valorizavam todas as tentativas de resistência",
acrescenta. "Porém, nos últimos anos, sobretudo depois de 2013, vozes que
antes estavam subterrâneas ou não encontravam lugar e legitimidade nos debates
públicos ressurgiram com mais força, com um discurso de valorização da
ditadura. Negando que tenham havido assassinatos, desaparecimentos e o uso da
tortura como polÃtica de Estado."
Ela explica que foram esses
mesmos discursos, Ã direita, que passaram a ressaltar "as eventuais mortes
de soldados e civis que ocorreram durante as ações revolucionárias". É um
cenário que ela classifica como "batalha por memórias".
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58582212.
Acesso em 17/09/2021.
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