Livro infantojuvenil "Flora, Faça Florir" aborda o racismo estrutural


A autora Janete Marques conta que seu mais recente livro, "Flora, Faça Florir" (Saíra Editorial), nasceu em meio ao exercício da outra atividade que divide, com a escrita, a atenção dela: a contação de histórias. "Em 2018, me desafiei a criar uma história para participar de um evento que promoveu discussões a partir da questão: 'O que você já deixou de fazer por ser mulher?'. Foi ali que a personagem Flora rompeu silêncios e promoveu diálogos entre meninas/mulheres pela primeira vez - e não parou mais", relembra a baiana. Logo aflorou a necessidade de dar voz à personagem de outras formas. Portanto, “Flora, Faça Florir!” surge do desejo de levar a experiência vivida nas rodas de histórias para a literatura infantojuvenil. "E, assim, seguir apoiando o florescer de meninas/mulheres e meninos/homens", diz ela.  

Na obra, Flora é uma menina negra que percebe o quão silenciadas as mulheres de sua família são. Ayo, mãe da personagem, mostra que a solidão tem cor e gênero. Já Abayomi, Zuri e Ayana, tia, irmã e avó de Flora, respectivamente, trazem à tona outras problemáticas sociais que as mulheres negras enfrentam ao longo da vida - desde o acesso à universidade até a necessidade de estabelecer uma relação de amor e respeito com a ancestralidade do povo preto. 

E é convivendo com essas quatro mulheres que Flora aprende a transformar silêncios em sons - e sons em ação. Além da questão racial a personagem também vive um conflito de gênero na narrativa. Ela gosta de jogar futebol, mas os meninos da escola não permitem por ser uma ‘brincadeira de menino’.

Janete confirma que a personagem ecoa algumas de suas próprias vivências. "Com certeza! Fui essa menina que ora silenciava, ora era silenciada. Até pouco tempo atrás, por exemplo, eu trazia a crença de que, na infância, tinha sido uma criança tímida. Hoje, na verdade vejo o quanto me calaram. Assim como Flora, também tenho uma mãe Ayo, que, para nos trazer sustento, saía pra cuidar dos filhos de patroas e tinha que deixar suas filhas com outros. E que quando retornava, trazia consigo cansaço e solidão. Também tenho tias 'Abayomi', que tiveram seus sonhos apagados pelo racismo, e irmãs 'Zuri' (ou eu mesma já fui Zuri), (personagem) que teve sua beleza negada por um sistema que faz a gente acreditar que é feia. Temos tantas Floras (Ayos, Abayomis, Zuris, Ayanas) por esse Brasil", aponta.

Perguntada sobre como avalia a importância, para a mulher preta, de participar da discussão desses temas desde a infância, ela pontua que a personagem Flora propõe um rompimento com a lógica colonialista. "Ela leva o pequeno leitor a visualizar e refletir sobre uma família negra não apenas no sentido da dor e das cicatrizes que o racismo promove, mas constrói um cenário humanizado, de amor, afeto, união, empatia, sororidade. Como eu gostaria que na minha infância tivessem livros que contassem a minha história, a história dos meus ancestrais a partir do nosso olhar, da nossa voz narrativa. Isso é revolucionário!", entende ela, acrescentando que se trata de uma revolução que se desenrola a partir do afeto, do autoamor, de encontros ("conosco e com os outros") que a arte literária promove. "Ter esses temas discutidos ainda na infância é lançar a semente e acompanhar o florescer da mulher preta".

Mas, sim, ela espera que o livro também alcance outros leitores. "Sei que a literatura infantojuvenil é inicialmente destinada a um público específico. Mas defendo a ideia de que livros são para aqueles que os querem ler, ou melhor, existe um encontro entre livros e leitores que está além dessas categorias. Flora dialoga com todas as crianças. Ela rompe com o silêncio diante da opressão do racismo estrutural e inspira outras meninas e meninos a romperem seus silêncios, seja quais forem". Portanto, Janete Marques salienta que o livro é para todos aqueles que lutam por uma sociedade antirracista, com equidade social e de gênero. "Embora nossa gente sinta o peso dessa estrutura todos os dias, o racismo estrutural é um problema de toda a sociedade, não apenas dos negros. Logo, a luta antirracista deve ser delegada a todos, inclusive pessoas fenotipicamente brancas".

Confira, a seguir, outros trechos da entrevista

O material de divulgação da obra, encaminhado à imprensa, aponta uma realidade que é sempre pertinente ser discutida: a de que a mulher preta está na base da pirâmide social.  Hoje, com o surgimento e atuação de tantos movimentos, com o ativismo, e com o fato de as questões que incrivelmente levaram o país a conviver com essa realidade por tanto tempo estarem sendo mais debatidas, você detecta algum avanço?

Só o fato de a grande mídia nomear a violência que mulheres, homens e crianças negras convivem cotidianamente nesse país, desde que ele foi fundado, por si só, já pode ser considerado um avanço. O racismo e o genocídio da população negra são uma dura realidade que nos atinge diretamente, mas que foi naturalizada ou negada por muitos.  Acho positivo o fato de o tema estar sendo amplamente discutido, acredito que é um caminho sem volta.

Na mais recente edição da revista "Claudia", temos, na capa, a atriz Pathy DeJesus, que é uma mulher preta. Na entrevista, ela fala que sempre "teve muita noção do que era racismo", mas, no entanto, reconhece que "enxergá-lo de forma estrutural foi um processo". Por isso é tão importante abordar essas questões também com as crianças?

Sabe aquela frase de lamento: “se eu soubesse tudo que se sei agora (...)”?  Acredito que caiba aqui, pois se eu soubesse tudo que sei hoje, minha infância e adolescência teriam sido diferentes. Mas ela (frase) só caberia em partes, pois a culpa por não sabermos antes o que sabemos hoje não pode ser atribuída a nós. O racismo estrutural é um sistema “bem elaborado”, organizado e planejado para manter um grupo no poder. Silenciar nossas histórias, apagar o nosso passado, fazer com que a gente se odeie e que despreze quem somos faz parte do plano. É muito importante ver crianças conhecendo a própria história, amando o que veem na frente do espelho. Acredito que conhecimento empodera, mas conhecer sua história e a dos seus ancestrais a partir do nosso olhar, isso é libertador.

Fonte: https://www.otempo.com.br/diversao/livro-infantojuvenil-flora-faca-florir-aborda-o-racismo-estrutural-1.2522767?utm_source=whatsapp. Acesso em 04/08/2021.


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