Na obra, Flora é uma menina negra que percebe o
quão silenciadas as mulheres de sua família são. Ayo, mãe da personagem, mostra
que a solidão tem cor e gênero. Já Abayomi, Zuri e Ayana, tia, irmã e avó de
Flora, respectivamente, trazem à tona outras problemáticas sociais que as
mulheres negras enfrentam ao longo da vida - desde o acesso à universidade até
a necessidade de estabelecer uma relação de amor e respeito com a
ancestralidade do povo preto.
E é convivendo com essas quatro mulheres que Flora
aprende a transformar silêncios em sons - e sons em ação. Além da questão
racial a personagem também vive um conflito de gênero na narrativa. Ela gosta
de jogar futebol, mas os meninos da escola não permitem por ser uma
‘brincadeira de menino’.
Janete confirma que a personagem ecoa algumas de
suas próprias vivências. "Com certeza! Fui essa menina que ora silenciava,
ora era silenciada. Até pouco tempo atrás, por exemplo, eu trazia a crença de
que, na infância, tinha sido uma criança tímida. Hoje, na verdade vejo o quanto
me calaram. Assim como Flora, também tenho uma mãe Ayo, que, para nos trazer
sustento, saía pra cuidar dos filhos de patroas e tinha que deixar suas filhas
com outros. E que quando retornava, trazia consigo cansaço e solidão. Também
tenho tias 'Abayomi', que tiveram seus sonhos apagados pelo racismo, e irmãs
'Zuri' (ou eu mesma já fui Zuri), (personagem) que teve sua beleza negada por
um sistema que faz a gente acreditar que é feia. Temos tantas Floras (Ayos,
Abayomis, Zuris, Ayanas) por esse Brasil", aponta.
Perguntada sobre como avalia a importância, para a
mulher preta, de participar da discussão desses temas desde a infância, ela
pontua que a personagem Flora propõe um rompimento com a lógica colonialista.
"Ela leva o pequeno leitor a visualizar e refletir sobre uma família negra
não apenas no sentido da dor e das cicatrizes que o racismo promove, mas
constrói um cenário humanizado, de amor, afeto, união, empatia, sororidade.
Como eu gostaria que na minha infância tivessem livros que contassem a minha
história, a história dos meus ancestrais a partir do nosso olhar, da nossa voz
narrativa. Isso é revolucionário!", entende ela, acrescentando que se
trata de uma revolução que se desenrola a partir do afeto, do autoamor, de
encontros ("conosco e com os outros") que a arte literária promove.
"Ter esses temas discutidos ainda na infância é lançar a semente e
acompanhar o florescer da mulher preta".
Mas, sim, ela espera que o livro também alcance
outros leitores. "Sei que a literatura infantojuvenil é inicialmente
destinada a um público específico. Mas defendo a ideia de que livros são para
aqueles que os querem ler, ou melhor, existe um encontro entre livros e
leitores que está além dessas categorias. Flora dialoga com todas as crianças.
Ela rompe com o silêncio diante da opressão do racismo estrutural e inspira
outras meninas e meninos a romperem seus silêncios, seja quais forem".
Portanto, Janete Marques salienta que o livro é para todos aqueles que lutam
por uma sociedade antirracista, com equidade social e de gênero. "Embora
nossa gente sinta o peso dessa estrutura todos os dias, o racismo estrutural é
um problema de toda a sociedade, não apenas dos negros. Logo, a luta
antirracista deve ser delegada a todos, inclusive pessoas fenotipicamente
brancas".
Confira, a seguir, outros trechos da entrevista
O material de divulgação da obra, encaminhado à imprensa, aponta uma realidade que é sempre pertinente ser discutida: a de que a mulher preta está na base da pirâmide social. Hoje, com o surgimento e atuação de tantos movimentos, com o ativismo, e com o fato de as questões que incrivelmente levaram o país a conviver com essa realidade por tanto tempo estarem sendo mais debatidas, você detecta algum avanço?
Só o fato de a grande mídia nomear a violência que mulheres, homens e crianças
negras convivem cotidianamente nesse país, desde que ele foi fundado, por si
só, já pode ser considerado um avanço. O racismo e o genocídio da população
negra são uma dura realidade que nos atinge diretamente, mas que foi
naturalizada ou negada por muitos. Acho positivo o fato de o tema estar
sendo amplamente discutido, acredito que é um caminho sem volta.
Na mais recente edição da revista "Claudia", temos, na capa, a atriz Pathy DeJesus, que é uma mulher preta. Na entrevista, ela fala que sempre "teve muita noção do que era racismo", mas, no entanto, reconhece que "enxergá-lo de forma estrutural foi um processo". Por isso é tão importante abordar essas questões também com as crianças?
Sabe aquela frase de lamento: “se eu soubesse tudo que se sei agora
(...)”? Acredito que caiba aqui, pois se eu soubesse tudo que sei hoje,
minha infância e adolescência teriam sido diferentes. Mas ela (frase) só
caberia em partes, pois a culpa por não sabermos antes o que sabemos hoje não
pode ser atribuída a nós. O racismo estrutural é um sistema “bem elaborado”,
organizado e planejado para manter um grupo no poder. Silenciar nossas
histórias, apagar o nosso passado, fazer com que a gente se odeie e que
despreze quem somos faz parte do plano. É muito importante ver crianças
conhecendo a própria história, amando o que veem na frente do espelho. Acredito
que conhecimento empodera, mas conhecer sua história e a dos seus ancestrais a
partir do nosso olhar, isso é libertador.
Fonte: https://www.otempo.com.br/diversao/livro-infantojuvenil-flora-faca-florir-aborda-o-racismo-estrutural-1.2522767?utm_source=whatsapp.
Acesso em 04/08/2021.
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