Nascida em uma comunidade da zona sul de Belo Horizonte, ela vem
de uma família muito pobre, com nove irmãos e sua mãe. Quando jovem ela
precisou conciliar os estudos trabalhando como empregada doméstica, até
concluir o curso normal, em 1971, já aos 25 anos. Mudou-se então para o Rio de
Janeiro, onde passou num concurso público para o magistério, estudando mais
tarde Letras na UFRJ.
“O grande compromisso da minha mãe era que todos nós
terminássemos o primário. A gente não tinha luz elétrica, então às vezes ler à
noite significava muitos gastos nesta realidade. A busca pela leitura em si foi
uma busca muito minha’, relembra a autora.
Suas obras abordam temas como a discriminação racial, de gênero
e de classe. Seu primeiro romance, “Ponciá Vicêncio”, é fruto de uma pesquisa
acadêmica produzida em 2007. A obra foi traduzida para o inglês e
publicada nos Estados Unidos, também em 2007. Atualmente leciona na UFMG como
professora visitante.
Conceição lembra que, durante a infância, foi marcada
por muita oralidade, ouvindo história de familiares próximos como a
tia e a mãe e, mais tarde, com materiais impressos que começaram a
entrar em casa. Desde o início do período escolar, a escritora afirma que
se sobressaía na escrita e criava composições.
“Quando eu terminei o primário eu ganhei um prêmio de redação
que eu falo que é o meu primeiro prêmio da literatura. O título era “por que me
orgulho de ser brasileira?” Essa possibilidade da escrita me dada pela vida
desde cedo. O grande compromisso da minha mãe era que todos nós terminássemos o
primário”, conta.
Como o racismo se apresentava naquela época?
A escola que eu estudava, Grupo Escolar Barão do Rio Branco, em
Belo Horizonte, era muito segregada e era composta por dois
andares. A parte de cima pertencia às crianças brancas e com alto poder
econômico, enquanto que as classes do porão, formada pela grande maioria,
era composta por alunos negros e pobres. A segregação racial e o racismo
estava dada naquela realidade.
Como foi o processo de se tornar uma autora publicada? Como é o
mercado no Brasil para autoras e autores negros?
Meu primeiro livro eu publiquei por conta própria, em
2003, mas desde os anos 80 a gente se reunia fazendo saraus de poesia.
Somente em 2013, eu tive uma obra publicada por uma editora maior. Hoje, sem
dúvidas, o processo é mais fácil, não é ainda como almejamos, mas hoje várias
editoras se voltam para a autoria negra.
No passado era impossível a literatura negra ser publicada em
grandes editoras. Hoje todos os manuscritos de Maria Carolina de Jesus estão
sendo publicados, mas desde sempre os autores negros se lançam no mercado
editorial a partir de editoras pequenas.
Como a escrita seria uma forma de fala e de resistência a toda
opressão que os negros passam?
É por isso que eu falo com tanta veemência ou afirmativa que
hoje ela tem o valor, inclusive de uma concepção de escrita, que é a
escrevivência. “A nossa escrevivência não é para adormecer os da casa
grande, mas sim para acordá-los dos seus sonhos injustos”. A escrevivência é a
tomada da palavra, da escrita, do mecanismo de poder, pois escrever é uma forma
de poder. Uma forma de resistência é cuidar para criarmos nossos personagens
com toda a dignidade humana, se afastando da literatura tradicional que nos
trata com estereótipos. Eu penso muito na Maria Carolina de Jesus, ela se
permitiu escrever, pois todos ou não queriam que ela escrevesse ou queriam
ditar o que ela deveria escrever.
Você concorreu ao prêmio de indicação ABL (Academia Brasileira de
Letras), que foi fundado por um homem negro, cuja negritude foi apagada para
que ele se tornasse um “autor universal”. Na literatura brasileira há uma
invisibilização da origem negra nos autores, tais como Machado de Assis, Lima
Barreto. Como é para você ser devidamente reconhecida como uma mulher negra
escritora?
Minha candidatura ao prêmio foi por meio de uma campanha de
fora para dentro e isso de certa forma incomodou a academia brasileira de
letras. É um direito não só para mim, mas da própria autoria negra, o direito
de também ser reconhecida como uma escritora brasileira.
Hoje quando eu insisto em ser reconhecida como uma escritora
brasileira eu também não perco esta perspectiva negra. Estamos presentes em
todos os setores da sociedade como a culinária, na religião, na língua. Se
muitas vezes nós estamos presentes como objetos da escrita, porque não
poderíamos ser protagonistas da escrita?
Geralmente somos colocados no papel excepcionalidade ou
colocados no papel de invisibilidade e isso me causa um certo estranhamento.
Quando eu estava em um auditório em Paris dando uma palestra eu fui muito parabenizada,
mas eu sabia que parte destas felicitações era o estranhamento de ver uma
mulher negra como escritora e não da forma com o que o folclore nos escreve, ou
no Carnaval. Sempre somos vistas como invisibilidade ou com
estranhamento.
Você falou para um auditório lotado, tem participado de várias
lives, debates e recebeu inúmeras homenagens. O espaço público e o ambiente
intelectual foi pensado para os homens, fazendo com que muitas mulheres negras
tenham dificuldades em se expressar e falar em público. Como mudar esta
realidade? Há avanços?
Acredito que cada vez mais os jovens estão tomando consciência
que todos os espaços são nossos, da fala, da escrita, espaços como se fossem
seus. Na literatura e na academia estamos cada vez mais em um processo que não
tem retorno.
O que eu acho interessante é nós não perdermos a nossa
perspectiva histórica de coletividade, é preciso nos fortalecer conjuntamente.
Não deixar também que cada conquista nossa vire uma possibilidade ou um
exercício de prepotência. O interessante é não sermos “a primeira a ganhar tal
prêmio ou estar em algum espaço”, isso é significativo, mas o mais importante é
abrir caminhos para outros além de nós.
Quem me colocou em visibilidade e legitimou a minha escrita
primeiramente foram os movimentos negros. Não foram os prêmios jornalísticos,
não foi a academia, nenhum um projeto, primeiramente foi o movimento negro.
Recentemente foi lançado um livro chamado “E se as cidades fossem
pensadas por mulheres?”, para você, como seria uma cidade pensada por e para
mulheres negras?
Uma cidade pensada por e para mulheres negras é uma cidade
planejada para todos/as/des, uma cidade onde a martenagem, que não significa
maternidade, mas a forma de dar acolhimento e de receber o outro em si, seja
com respeito e amorosidade. Uma cidade que deveria ter a marca do acolhimento
de todas as pessoas. A fome ainda é uma realidade brasileira que precisa ser
combatida.
Ler Carolina Maria de Jesus, por exemplo, é nos depararmos com
uma realidade brasileira ainda permanente e da falta de condições de
vida.
Fonte: https://www.geledes.org.br/quem-me-colocou-em-visibilidade-foi-o-movimento-negro-diz-conceicao-evaristo/.
Acesso em 06/07/2021.
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