"Estudei. Resisti.
Consegui", escreveu Matheus em seu Instagram para comemorar.
Com isso, Matheus se tornou uma espécie de minicelebridade. Ele tem dado entrevistas praticamente diárias a respeito de como conseguiu tirar a nota quase máxima na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e ser aprovado em um curso concorrido de uma universidade federal, mesmo tendo estudado por conta própria, em uma casa sem energia elétrica e sem acesso à internet. Mas a fama tem sido agridoce, diz Matheus.
Mas não quer ver sua história de vida e
seu esforço usados para exaltar a meritocracia e por quem critica um suposto
"vitimismo negro" — ou seja, a ideia de que negros poderiam competir
por oportunidades em condições de igualdade que brancos e aqueles que reclamam
das injustiças causadas pelo preconceito estariam se colocando na posição de
"vítimas" sem motivos para isso.
"Isso está me incomodando
demais. Esse discurso é balela", diz Matheus à BBC News Brasil.
"Poxa, o que eu sofri eu
não desejo para nenhum estudante. Se tivesse tido um bom local para estudar, se
não tivesse tido que trabalhar, teria facilitado bastante."
Uma das manifestações públicas que o
incomodaram veio do presidente da Fundação Cultural Palmares, Sergio Camargo. O
órgão, ligado ao governo federal, é dedicado à promoção da cultura
afro-brasileira.
"Enquanto pretos
vitimistas jogam suas vidas fora na militância ressentida, bailes funk, vício
da maconha, bandidagem e manifestações de esquerda, esse rapaz dedicou-se ao
estudo com muita disciplina e esforço, associado à fé em Deus. Matheus venceu
em meio a grandes dificuldades (sem luz nem internet). Ele é a prova de que
negros não precisam ser vítimas. Terá um futuro brilhante. Parabéns!",
escreveu Camargo no Twitter.
"Não é bem assim, 'quem quer
consegue'", responde Matheus.
"Meritocracia é quando as
pessoas têm os mesmos direitos. (...) Para a gente que é de periferia, de
interior, de favela, as políticas públicas não chegam. Sempre trabalhei num
turno e estudei no outro, o que é bastante complicado, porque nossos pais não
têm condição de pagar cursos, materiais. Você chega cansado, e isso atrapalha
bastante."
"Às vezes precisa
(escolher entre) trabalhar para ter dinheiro e botar comida em casa, ou
estudar. Não acho bonito ter que fazer essa escolha complicada",
prossegue.
Matheus lamenta que muitos
estudantes, como ele próprio, não disponham de ambientes adequados para estudar
dentro de casa e tenham ficado sem opções durante a pandemia, quando escolas e
espaços públicos foram fechados.
"Então, romantizar a
pobreza não é algo legal, é triste. Eu ter tido que estudar sem energia
elétrica e o pessoal achar 'que bonito, que belo' não é nem um pouco
legal."
Trajetória
Matheus começou a prestar o
Enem em 2015. Fez as provas todos os anos desde então. Chegou a ser aprovado em
Enfermagem e fez curso durante dois anos, mas desistiu para se concentrar no
sonho de fazer Medicina.
Neste último ano, sem ter espaço para
estudar em casa e com a biblioteca local fechada, Matheus passou a estudar na
casa de uma amiga — onde não havia energia elétrica ou internet.
Para contornar os desafios,
Matheus contratou um plano de dados no celular e passou a dedicar-se ao estudo
com "disciplina de atleta".
Ele conta que lia
constantemente, de livros a gibis e reportagens, para estimular sua capacidade
de interpretação de texto e aumentar seu repertório — habilidades úteis nas
provas de linguagem e redação.
Também usou materiais gratuitos
online e provas antigas para se preparar.
Adaptou-se ao chamado
"método pomodoro" de estudos, que preconiza que o estudante
dedique-se a uma tarefa por 25 minutos e em seguida faça uma pausa de 5
minutos, e depois repita o mesmo procedimento com a segunda tarefa, e assim por
diante.
Esse tipo de método, segundo
neurocientistas, ajuda a descansar o cérebro e a tirar o máximo proveito da
capacidade de atenção.
Para simular as condições exatas que
enfrentaria no dia do Enem, Matheus passou a estudar à tarde e usando máscara,
com o objetivo de "acostumar minha respiração".
"Estudar não é só sentar
na cadeira e riscar papel. Tem que ter método, estratégia", argumenta.
"Fiquei tantos anos
fazendo tanta prova que pensei, 'puxa, o que posso fazer para facilitar meu
processo de aprendizado?' (Decidi que) ia me preparar como atleta; ter
disciplina, foco".
E essa rotina de estudos tinha
de ser conciliada com o trabalho. Matheus já trabalhou como carregador,
vendedor de frutas e entregador de pizza, até começar a dar aulas de reforço.
A dedicação, porém, foi
recompensada. Na redação do Enem mais recente, Matheus obteve 980 pontos, perto
da nota máxima de mil, e foi aprovado na UFRB.
Agora, ele está cursando
Medicina à distância (temporariamente, por conta da pandemia), até chegar a
hora de mudar-se para a universidade, na cidade de Santo Antônio de Jesus, em
novembro. Seu objetivo, por enquanto, é especializar-se em Medicina da Família
ou Neurologia.
O jovem fez uma vaquinha para
conseguir dinheiro para comprar um computador e para custear suas despesas
universitárias e obteve ajuda de famosos, como a ex-BBB Camilla de Lucas.
"Mas a maioria das pessoas
que me ajudaram são pessoas como eu, simples — donas de casa, pedreiros, que
sentiram uma certa identificação. Alguns mandaram mensagens dizendo 'não
desista, você representa muito para mim', e ajudaram com R$ 1 ou R$ 5. Agora
não sou mais eu — sou eu e mais um monte de gente", comemora.
"Eu não tive cursinho, não tive dinheiro pra isso. Não consegui bolsa. então fui estudar por conta própria, o que foi bastante complicado. Aí tem os amigos (que perguntam) 'Matheus, como conseguiu fazer isso, velho, num período de pandemia, sem energia, sem cursinho, sem recursos? Tu conseguiu algo bem grande'. É, mas tudo o que eu criei foi um molde, uma estratégia, para poder facilitar na hora da prova."
'Redação com Matheus'
Seu perfil no Instagram, Redação com
Matheus, hoje tem 18,4 mil seguidores. Matheus compartilha seu método de
estudos e dá dicas — sobretudo para a temida prova de redação — para outros
estudantes "sonhadores" como ele.
"Agora, eu tenho uma certa
representatividade, e acho bom que (os jovens) tenham alguém em quem se espelhar.
Hoje em dia, tudo é instantâneo, então, você olhar para alguém e sentir
identificação é legal", afirma.
"Todos os dias chegam
centenas de mensagens de jovens como eu, do interior, de zonas periféricas,
dizendo 'você me inspirou, vou estudar também, sei que vai ser
complicado'", conta ele.
"Os meninos aqui no bairro
quando eu passo dizem 'olha ali o menino que passou em Medicina'. Tem os que
chegam em mim e falam 'o tio, vou estudar para ser igual ao senhor, para ser
grande'. Vejo que poxa, tem um certo impacto. Quando você vê alguém igual você
vencendo, isso te motiva - 'pronto, dá para mim também'. É algo bastante
interessante e gratificante."
Mas defende que jovens como ele
precisam de políticas específicas, além de fontes de inspiração. "Não era
para ter sido tão difícil assim para mim", diz.
"Eu conseguir pular o
sistema (e ser aprovado no vestibular) virou uma notícia tão grande porque não
é comum, não é padrão, mas era para ser padrão", afirma.
"Falta explicar os caminhos possíveis para quem concluir o ensino médio, mostrar os cursos técnicos para quem não quiser fazer faculdade, dizer 'se capacite, não fique só com o ensino médio'. Tem que dar caminhos para abrir os horizontes (dos jovens)."
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57993149. Acesso em 29/07/2021.
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