Do ponto de vista econômico, produzia tabaco, cachaça
(hoje, os licores com grande fama), além da agricultura de subsistência e o
mais importante produto do agronegócio da época: o açúcar com a utilização da
mão de obra escrava. E mesmo agora, quando as senzalas já não ocupam a
paisagem, a vida do nosso povo continua difícil como lembra os versos do poeta:
Em usinas escuras, homens de vida amarga e dura produziram este açúcar branco e
puro com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
A
sociedade formada no Recôncavo Baiano e em Cachoeira nos três séculos de
colonização mobilizou europeus, povos nativos e africanos (sempre impregnado de
protagonismo em suas lutas) na ocupação e exploração do território com o
objetivo de atender aos interesses da metrópole portuguesa conforme
estabelecido em um sistema conhecido como PACTO COLONIAL: termo consagrado pela
historiografia para designar as relações assimétricas de poder entre a Colônia
(sem autonomia política) e a Metrópole (centro das decisões).
É nesse sentido que podemos entender os embates entre
portugueses e brasileiros, bem como o processo que teve início no dia 25 de
Junho de 1822 com o primeiro passo na Independência do Brasil, na Vila de Nossa
Senhora do Rosário Porto da Cachoeira e culminou com a vitória das forças
patrióticas a 2 de julho de 1823, no âmbito da Crise do Antigo Sistema
Colonial.
Com efeito, a elevação à categoria de Reunido Unido de
Portugal, Brasil e Algarves por força da presença da Família Real, fez com que
o Brasil pudesse gozar de mais liberdades econômicas, o que satisfazia os
proprietários de terras e escravocratas ligados ao setor agrário-exportador,
aos grandes comerciantes e a uma nobreza “nacional”, além de parte da população
da colônia que passou a ter o acesso a serviços e espaços públicos como
resultado das medidas de D. João VI, no Brasil desde 1808.
Entrementes,
o retorno do Rei D. João VI e a sua Corte para Portugal, em 1820 abriu espaço
para a iminente ameaça de (re)colonização do Brasil o que acarretaria a volta
de pesados tributos e cerceamento das liberdades econômicas. Foi nesse contexto
que acendeu a chama nacionalista e os desdobramentos dessa reação culminaram
com as lutas de independência do Brasil, a partir do Recôncavo Baiano, região
de grande importância econômica e política.
Entretanto, as elites coloniais temiam uma ruptura
política com Portugal cujas consequências pudessem colocar em risco a estrutura
social da época: a escravidão. O “fantasma” da Revolução Haitiana, quando a
partir de 1791 um grupo de descendentes africanos liderados pelo alforriado
François Dominique Toussaint promoveu um movimento de independência com a
abolição da escravidão e instalação de uma república assombrava o Novo Mundo.
Na Bahia, a Conjuração dos Alfaiates, em 1798, representou uma proposta emancipacionista
profundamente inspirada em ideais populares e progressistas: “Animai-vos, povo
bahiense, que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade, o tempo em que
seremos todos irmãos, o tempo em que seremos todos iguais.” Esse movimento
popular foi duramente reprimido, mas permaneceu como um sentimento
emancipacionista latente que encontrou abrigo nos acontecimentos dos anos de
1822 e 1823, apesar do desfecho monarquista e centralizador que iria moldar o
Estado Brasileiro, durante o Império.
Os deputados brasileiros que retornaram da cidade do
Porto e os seus pares aqui no Brasil passaram a enxergar na figura de Pedro de
Alcântara uma saída, um caminho mais seguro para evitar uma hecatombe na ordem
social vigente e proceder à ruptura com Portugal. Mas esse não foi um processo
simples.
A
política para o Brasil adotada pelas Cortes Gerais Portuguesas era no sentido
de não existir nenhum tipo de poder central executivo na colônia e para tanto
indicou o retorno de D. Pedro, a Portugal (contrariando essa ordem temos o
famoso Dia do Fico) e redefiniu o comando das Armas nas Províncias. Na Bahia,
esse foi um processo tenso.
Ignácio Madeira de Melo foi designado para assumir o
comando das armas em substituição ao brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães
o que gerou conflitos. Em 19 de fevereiro, Madeira de Melo fez valer a decisão
de Lisboa e ocupou a sua função após atacar o Quartel da Mouraria (vizinho ao
Convento da Lapa – episódio que marcou a morte da Sóro Joana Angélica que se
colocou a frente da entrada que dava acesso ao convento para impedir a invasão
dos portugueses que procuravam pelos soldados brasileiros); além disso, também
bombardeou o Forte de São Pedro que capitulou.
Diante da violência empreendida por Madeira de Melo e a
chegada de mais tropas portuguesas em Salvador, inúmeras famílias abandonaram
os seus casarões e solares em direção ao Recôncavo Baiano: Santo Amaro, São
Francisco do Conde, Maragogipe e Cachoeira.
Em 14
de junho de 1822, na Vila de Santo Amaro da Purificação a Câmara reunida
decidiu: “que haja no Brasil um centro único de poder executivo”. No dia 24 de
junho, secretamente reuniram-se, em Belém, os proprietários José Garcia Pacheco
de Moura Pimentel e Aragão e Rodrigo Falcão Brandão junto com soldados,
lavradores e intelectuais. Mas foi no dia 25 de Junho de 1822, na Casa de
Câmara e Cadeia que o primeiro brado de independência foi ouvido.
A Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira
com a presença dos habitantes da então Freguesia de Deus Menino de São Félix
antecipou a 25 de junho de 1822 a aclamação de Pedro de Alcântara, como
Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil: naquele momento estava decidido – O
Brasil não estaria mas sujeito às ordens de Portugal.
A canhoneira disposta no Rio Paraguaçu dispara contra a
multidão dos que se regozijavam com a decisão da Casa de Câmara e Cadeia e
celebrava Te Deum na Igreja Matriz daquela vila. Os portugueses não aceitariam
aquela ousadia.
Era o
início das Guerras de Independência na Bahia. Após quatro dias de batalhas, a
canhoneira lusitana foi vencida. Na casa de nº 3, situada na atual Praça Inácio
Tosta, popularmente conhecida como Praça do Relógio, em São Félix – então
distrito de Cachoeira - foi fabricada a cartucheira com a qual a embarcação
portuguesa foi vencida: a notícia se espalhava e o sentimento nacionalista
ganhava os corações brasileiros.
A Guerra entrou pelos meses do ano de 1822, batalhões
patrióticos se formaram. As guerras são capazes de revelar inúmeras facetas: do
Batalhão dos Periquitos ao Exército Pacificador liderado por Labatut e a
Marinha organizada pelo Lord Cochrane; às importantes batalhas como a de Pirajá
e 7 de Janeiro, em Itaparica. Digno de nota a constatação do General Labatut ao
chegar para organizar as forças armadas oficiando ao Ministro José Bonifácio:
“nosso exército é formado por voluntários, brancos pobres, tupinambás, negros
libertos e escravos enviados pelos seus senhores e esclarece: nenhum filho de
proprietário rico tinha se apresentado como voluntário.”
Por esse motivo, vale destacar a participação popular na
Bahia, a presença do povo que nos legou o Soldado Medeiros – a nossa valorosa
Maria Quitéria que serviu no Batalhão dos Periquitos cuja atuação foi decisiva
na defesa da Barra do Paraguaçu protegendo a Bacia do Iguape e todo Recôncavo
Baiano. Digno de destaque esse protagonismo feminino, a força e a atitude da
mulher por quanto ainda seja necessário por reiteradas vezes assumir uma agenda
de emancipação e dos direitos feministas em um país como o Brasil em que se
registra alto índice de violência contra a mulher nos dias atuais: que as
mulheres de hoje já não precisem se vestir de homens para ocupar os diferentes
espaços e tenhamos Maria Quitéria como um símbolo da luta feminina da qual
devemos nos orgulhar.
E Maria Felipa – mulher negra, marisqueira corajosa a
enfrentar com outras mulheres os soldados portugueses quando atacaram Itaparica
tomandolhe as armas. O 25 de junho pertence a todo povo de Cachoeira e do
Recôncavo Baiano, parte instigante da Epopéia das Guerras da Independência da
Bahia e do Brasil.
Cachoeira, São Félix, Santo Amaro, Maragogipe, São
Francisco do Conde, Itaparica: as Vilas do Recôncavo Baiano; Jacobina, Rio de
Contas e as Vilas do Sertão Baiano, foram decisivas no processo da
Independência da Bahia. Portanto, o 25 de junho não é apenas uma data
histórica, simboliza a luta do povo baiano contra a opressão e a tirania com
que se revestiu o domínio português sobre essas terras. Talvez por isso esse
processo tenha mobilizado diferentes setores da sociedade da época, senhores de
engenho, grandes proprietários de escravos e de terras, comerciantes,
artífices, a população pobre e escrava, funcionários públicos todos avizinhados
pelo ideal de nacionalidade – eis o Estado como comunidades imaginadas!
Em uma manhã de sol, Salvador foi reconquistada das
garras de Madeira de Melo. Pirajá, Cabrito, Convento da Lapa, Forte São
Marcelo, Forte São Pedro são lugares indissociáveis dessas páginas da história
da Bahia. Maria Quitéria, General Labatut, Joana Angélica, João de Botas,
General Lima e Silva, José Antônio da Silva Castro, Tambor Soledade, Maria
Felipa, Corneteiro Lopes são nomes consagrados nos anais da história e da
memória popular desses acontecimentos entre o 25 de Junho de 1822 e o 2 de
Julho de 1823. Mas o que temos a aprender com tudo isso? Como as gerações do
presente compreendem as comemorações desta importante data?
Seja a firmeza da Cabocla – alusão a Catarina Paraguaçu –
símbolo da união entre os povos e da mulher guerreira – a inspiração da luta
atual das mulheres. Em cada mulher uma Maria Quitéria, “empoderada” e disposta
a lutar contra as diversas formas de violência física e psicológica, no
presente.
Com um dragão aos seus pés representando a opressão dos
portugueses derrotados e os símbolos da guerra que adornam o seu carro
alegórico, o Caboclo de ontem nos lembra do quanto devemos lutar hoje quando os
nossos direitos estão ameaçados (demarcação de terras indígenas e ações de
reparação) e as conquistas sociais sofrem poderosos ataques na
contemporaneidade brasileira.
Que a memória da Guerra de Independência na Bahia inspire
a lutar a batalha cotidiana pela nossa sobrevivência diante das agendas
atualizadas pelas demandas sociais, políticas e culturais da atualidade. E
nesse momento, em meio a uma pandemia que ameaça os seres humanos e o modo de
vida como o conhecemos hoje, esteja cada um seguro na fé em Deus, animado pela
esperança e inundado pelo amor ao próximo.
Fábio Batista Pereira - Mestre em História pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano - UFRB. Graduação em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS. Professor da Rede Estadual de Ensino. Músico e produtor cultural.
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