Os números são atuais, mas se conectam a
um histórico de indignações pouco reconhecido.
Apenas 18% dos autodeclarados pretos
consideram o governo Bolsonaro bom ou ótimo e 45% acham o desempenho do
presidente ruim ou péssimo. É o grupo racial com maior rejeição ao
governo, conforme revelou pesquisa Datafolha na última quarta-feira (12).
A pesquisa mostra o índice de aprovação
do governo Bolsonaro mais baixo registrado desde o início do mandato, 24%,
enquanto a rejeição subiu para 45%.
O que explica essa reprovação maior entre
pessoas pretas?
A pesquisadora Ana Flávia Magalhães
Pinto, professora doutora do Departamento de História da Universidade de
Brasília (UNB), apresenta dois caminhos possíveis para a questão.
“Em primeiro lugar, está relacionado à
memória da fome e da miséria, que têm aumentado e atingido diretamente essa
população. As pessoas sabem que não há compromisso deste governo em alterar
essa situação. A outra resposta é que essa rejeição é resultado da luta
histórica do movimento negro no país e da ampliação do debate sobre acesso aos
direitos de cidadania e da conscientização política”, afirma.
O fato, como alerta a pesquisadora, é que
o país não está acostumado a perceber a população negra com protagonismo
político e com inserção nos rumos do país. Ela cita mobilizações nacionais
provocadas pelo movimento negro, sem a visibilidade midiática e sem apoio das
elites políticas.
“Subestimaram o movimento pelas ações afirmativas
e pelas cotas que redesenharam o perfil das universidades brasileiras.
Subestimaram a reivindicação do movimento negro pela memória de Zumbi dos
Palmares e das lutas contra a escravidão. Não admitem a força política dos
negros.”
Para ela, essas pautas avançaram e se
consolidaram pelo poder de organização política das pessoas pretas. Esta
população vem ampliando sua participação social e a expectativa em relação ao
atendimento a suas demandas históricas.
“Está cada vez mais difícil falar por
nós, sem nós”, defende Ana Flávia.
Declarações que deslegitimam as causas
negras e até de negação do racismo no Brasil por Bolsonaro e membros do seu
governo, como o presidente da Fundação Palmares, afastam essa gestão das pautas
antirracistas e do cotidiano da população negra.
Negros protagonizaram a própria libertação
Exemplo dessa tentativa de apagamento do
protagonismo da população negra está na abolição da escravatura. Durante anos,
os livros didáticos e os meios de comunicação destacaram a bondade da monarquia
portuguesa, na figura da princesa Isabel, que teria concedido essa benesse aos
escravizados, com a assinatura da Lei Áurea.
“O fim da escravidão foi um projeto
sonhado e construído por pessoas negras, que resistiram em fugas e levantes ou
que aproveitaram as brechas do sistema para pressionar o Estado brasileiro.
Para isso, se organizaram em associações, irmandades, clubes e jornais da
imprensa negra.”
Ana Flávia Magalhães Pinto é autora,
entre outras obras, do livro Escritos de Liberdade – literatos negros, racismo
e cidadania no Brasil oitocentista (Editora Unicamp, 2018).
Na obra, a partir de descobertas em
documentos históricos e edições de jornais do século 19, a pesquisadora destaca
a participação de homens e mulheres negras nas reivindicações por seus
direitos. Ela conta a estratégia de negros, livres, letrados e atuantes no
cenário político do Brasil, como Luiz Gama, José do Patrocínio, André Rebouças,
Machado de Assis, entre outros.
“Um Brasil não vivido no tronco, nem na
senzala”, define, referindo-se a uma história negra que não pode ser resumida à
escravidão.
Como hoje, negros eram maioria em 1888
Assim como a hegemonia de lideranças
brancas nos partidos de oposição a Bolsonaro não representa a rejeição maior
entre os pretos revelada pela pesquisa Datafolha, também não é representativa a
imagem fixada do movimento abolicionista liderado por homens brancos da elite.
O contraste está na presença de figuras
negras como José do Patrocínio, defendendo o anseio dos negros, que já eram o
maior contingente populacional do país naquele período.
“O Censo de 1872 apontava que 58% da
população era de negros. Destes, de cada dez, seis já eram libertos, que tinham
interesse direto na abolição para fazer valer plenamente sua cidadania.”
Ana Flávia conta que os libertos e até os
nascidos livres eram limitados em seus direitos, como o acesso à educação e ao
voto, além de sofrerem violências por parte da polícia da época.
“Há inúmeros registros de reescravização
de libertos e até de escravização de negros que nasceram livres, como é o caso
de Luiz Gama.”
A historiadora alerta para o perigo de
cair na falsa dicotomia entre o 13 de maio e o 20 de novembro, data da morte de
Zumbi dos Palmares, que se tornou o Dia Nacional da Consciência Negra.
“A força de Palmares abriu caminho para a
descoberta de histórias de resistência negra e uma agenda de revisão histórica,
que não se limita a Palmares, nem à experiência de quilombos.”
Para ela, há um lastro histórico de
resistências que se evidencia nos movimentos negros do século 21. “O que
fazemos hoje é herança dessas lutas. Sequestraram nosso protagonismo na
história, mas nossa força política não é uma abstração.”
13 de Maio de Lutas
Prova disso é a transformação do 13 de
maio em Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo. Neste ano, foi um dia
intenso de mobilizações em diversas cidades do país, convocadas pela Coalização
Negra por Direitos.
Entre as pautas do 13 de Maio de Lutas,
justiça para as vítimas do massacre na favela do Jacarezinho, no Rio de
Janeiro, e das operações policiais que resultaram em mortes nas favelas do
Brasil.
No manifesto da Coalização consta que,
desde junho de 2020 até março, mais de 823 pessoas foram mortas em operações
policiais, mesmo com a proibição no Rio desse tipo de ação policial durante a
pandemia pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
As reivindicações também foram
direcionadas ao governo Bolsonaro e ao descaso no controle da pandemia e na
assistência aos que ficaram desempregados e passam fome.
“Nem bala, nem fome, nem Covid. O povo
negro quer viver”, pediu a coalização em manifestações por cidades de norte a
sul do país.
Fonte: https://www.geledes.org.br/datafolha-e-abolicao-por-que-rejeicao-a-bolsonaro-e-maior-entre-os-pretos/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification. Acesso em 16/05/2021.
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