Tal medida aboliu oficialmente a escravidão
no Brasil, quando grande parte da população negra não se mantinha mais nos
cativeiros, por força da luta e resistência dos movimentos negros nos
quilombos, nas irmandades, nas rebeliões como a Revolta dos Malês, bem como em
razão das pressões internacionais, tendo sido o Brasil o último país da América
a fazê-lo. A Princesa Isabel, assim, somente cumpriu o papel de formalizar a
libertação já insustentável no cenário nacional e internacional à época.
Contudo, a libertação foi realizada sem
qualquer política de emprego e educação à população negra, o que resultou na
estrutura desigual e perversa que historicamente pautou a sociedade brasileira,
relegando aos negros e negras, que construíram o país, o lugar da opressão, da
discriminação, da pobreza, do trabalho precário, da criminalização, impondo
esforços sobre-humanos às gerações que se seguiram, para reverter a situação de
exclusão social que lhes foi imposta pelo Estado racista.
É importante destacar que além de não terem sido assegurados postos
de trabalho formais, perpetuando-se a exploração do trabalho nas fazendas e nos
serviços domésticos, em condições precárias, não houve medida reparatória até
hoje em relação aos três séculos e meio de escravidão, mediante reconhecimento
de terras ou pagamento de valores indenizatórios à população negra. As ações
afirmativas conquistadas ao longo das últimas décadas constituem medidas
necessárias à efetivação de direitos, como o acesso à educação e ao ensino
superior. E há ainda necessidade de medidas compensatórias para assegurar a
igualdade de oportunidades no trabalho, direito também reconhecido pelo
Estatuto da Igualdade Racial[1],
Lei 12.288/2010, que prevê a responsabilidade do Estado e da atividade
empresarial em promover tais ações.
Portanto, não há motivos a comemorar a
abolição formal da escravidão, quando até os dias atuais se luta por políticas
de igualdade racial no trabalho, no acesso à educação, na representatividade
nos espaços institucionais, na mídia, na publicidade, no cumprimento da Lei
10.639, de 9 de janeiro de 2003, quanto ao ensino de cultura afro-brasileira
nas escolas, no combate ao racismo em todas as suas formas.
A data é considerada pelo movimento negro como dia nacional de luta
contra o racismo, e reconhecida como tal por governos anteriores, como faz
certa declaração da falecida Ministra Luiza Bairros, responsável à época pela
então Secretaria de Políticas de Promoção Racial – SEPPIR, atualmente extinta,
em matéria publicada pela Agência Brasil no ano 2014, Lei Áurea não é motivo de
comemoração, afirmam movimento negro e Seppir[2].
Não se pode admitir que integrantes do Poder Legislativo, que
exercem mandato de representação da sociedade, desconsiderando a verdadeira
história de luta pela abolição da escravidão no Brasil, prestem homenagens a
uma data que marca opressão e violação de direitos humanos fundamentais à
população negra, formalmente liberta, mas sem condições de dignidade e
igualdade de oportunidades. O racismo estrutural persiste no Brasil e ainda há
muito a ser feito para que os 54% da população negra, formada por pretos e
pardos, tenham pleno acesso aos direitos sociais. Na Câmara Federal, menos de
25% dos deputados são negros[3],
e isso que houve elevação da representatividade negra na última eleição. Nos
Estados da federação há assembleias legislativas que não tem qualquer
representatividade negra[4].
O censo do Poder Judiciário (CNJ, 2013) aponta 15,6% de magistrados entre
pretos e pardos[5].
O mesmo se repete em outras estruturas de poder, instituições, empresas
públicas e privadas.
Em relação às condições de trabalho,
consoante dados da PNAD (IBGE), divulgados em 17.11.2017, 63,7 % dos
desempregados são oriundos da população negra. Além disso, os dados da síntese
de indicadores sociais, divulgados em 15.12.2017, mostram que, entre os 10%
mais pobres da população brasileira, quase 80% eram pretos ou pardos. No
que concerne aos números de violência, o peso da desigualdade racial é absurdo.
A taxa de homicídios de negros cresceu 23,1 % de 2006 a 2016, ao passo em que
entre os não negros reduziu 6,8 % no mesmo período. Com o recorte de gênero
incluído, a taxa de homicídio de mulheres negras aumenta para 15,4 %, enquanto
de mulheres não negras houve queda de 8 %. Dados esses extraídos do Atlas da
Violência, organizado pelo IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Some-se a isso o fato de, nos últimos tempos estar se tornando frequentes
manifestações de racismo nas redes sociais, em locais públicos e até
expressadas por autoridades.
Tais situações não podem ser reforçadas com o enaltecimento da
nobreza, que deixou de assegurar direitos à população negra, em detrimento do
reconhecimento da luta dos verdadeiros heróis e heroínas da sociedade
brasileira no processo que levou à abolição da escravidão, tão bem retratada no
samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira[6],
que emocionou ao resgatar a história do povo negro, nas figuras de Luiza Mahin,
Dandara, Akotirene, Tereza de Benguela, Marielle, tampouco podemos apagar o
herói Zumbi dos Palmares e abolicionistas como Luiz Gama, Dragão do Mar,
Esperança Garcia, Maria Firmina dos Reis, entre outros.
Diante disso, merece repúdio da sociedade
comemorações e homenagens à Princesa Isabel, desprovidas da necessária crítica
às condições em que se deu a abolição e aos motivos que levaram à promulgação
da Lei Áurea. Tais homenagens representam um insulto à população negra,
reforçando o racismo estrutural, com a omissão de fatos históricos que
constituem direitos fundamentais à memória, informação, cultura e cidadania do
povo brasileiro.
Fonte: https://www.geledes.org.br/nao-veio-do-ceu-nem-das-maos-de-isabel-a-liberdade/. Acesso em 13/05/2021.
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