A dura rotina de violências sociais vivida pela escritora negra Carolina Maria de Jesus na década de 1950 se assemelha à realidade que muitos brasileiros têm enfrentado em meio à pandemia do coronavírus.
“Como é horrível ver um filho comer e
perguntar: ‘Tem mais?’ Esta pergunta ‘tem mais’ fica oscilando dentro do
cérebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais”, escreveu Carolina em
seu livro de estreia.
Quarto de despejo: diário de uma favelada foi lançado em 1960 e retrata a
vida da autora e de seus três filhos na favela do Canindé, em São Paulo, entre
julho de 1955 e janeiro de 1960. A obra manteve a grafia original da autora,
que estudou só até o segundo ano primário.
A experiência de ver os filhos com fome
descrita por Carolina é vivida no Brasil de 2021 por Breda Souza Pimentel, de
26 anos e moradora de Petrolândia, às margens do rio São Francisco, em
Pernambuco.
“Tenho quatro meninos e uma menina, o
mais velho tem 8 anos e a mais nova, 5 meses. Eu vivo só com meus filhos”,
conta a pernambucana.
“Eu trabalhava de ajudante de
cabeleireira, mas a moça que tinha o salão fechou, porque não estava mais tendo
clientela. De lá para cá, eu vinha me sustentando com esse auxílio que tinha,
mas agora eu não fui contemplada, fiquei só com meu valor do Bolsa Família, que
é R$ 189.”
“Eu estou vivendo só com isso, mas às
vezes as pessoas me ajudam com alimentos para os meus filhos. De vez em quando,
eu acho algum bico para fazer, mas é muito raro. Tem dias que não tenho nem o
leite da minha bebê.”
“Minha situação, a cada dia que passa,
piora mais, porque sem trabalho é complicado demais. E, com criança pequena, eu
não tenho com quem deixar. Os meus maiorzinhos, quando não tem comida, eu
converso com eles e eles entendem. Mas os pequenos não entendem.”
“A gente tenta ter um ânimo, mas não
consegue, porque o desemprego está muito grande em todo lugar. É só angústia e tristeza,
quem é mãe entende”, conclui Breda.
O Brasil da década de 1950
A volta do Brasil ao mapa da fome, o
aumento da inflação e a expansão da pobreza são marcas tristes de um ano em que
Carolina Maria de Jesus recebeu o título de doutora honoris causa pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e que seu best seller Quarto
de despejo ganhou edição especial comemorativa pela Editora
Ática, após ser traduzida para 13 idiomas.
Mas é claro que o Brasil de hoje é muito
diferente daquele da década de 1950.
Por exemplo, naquela época, éramos cerca
de 52 milhões de brasileiros e hoje somos mais de 211 milhões. Pouco mais de
36% da população de então era urbana, comparado a 85% hoje. Metade da população
de 15 anos ou mais era analfabeta, ante menos de 7% de analfabetos atualmente.
Um levantamento de 1957 contava 141
favelas em São Paulo, com pouco mais de 8 mil domicílios e cerca de 50 mil
favelados. Em 2017, os domicílios em favelas na cidade eram mais de 390 mil,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Entre 1955 e 1960, a inflação no país
subiu a uma média de 23% ao ano, segundo o IGP-DI da Fundação Getúlio Vargas. A
segunda metade da década de 1950 foi marcada pela modernização industrial do
país, que resultou num processo inflacionário e no aumento da desigualdade, com
uma maior produção de riqueza que não chegava para todos.
O processo de industrialização na década
de 1950, que levou ao início da favelização nos grandes centros urbanos, trouxe
consigo um fenômeno novo: a fome urbana. O jornal Folha da Manhã, que viria
depois a se tornar a Folha de S. Paulo, em uma reportagem de 1952, descrevia as
recém surgidas favelas como “um ambiente de miséria, desconforto e fome”.
“A fome age não apenas sobre os corpos
das vítimas”, escreveu Josué de Castro, autor do primeiro mapa da fome do
Brasil, que deu origem ao livro Geografia da Fome, de 1946.
“Consumindo sua carne, corroendo seus
órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu espírito, sobre
sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Nenhuma calamidade pode
desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo
quanto a fome.”
O Brasil de 2021
Apesar das diferenças, há pontos em
comuns entre os dois momentos da história.
Estudo publicado em abril pela
Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, revelou que 59% dos domicílios
brasileiros passaram por situação de insegurança alimentar durante a pandemia.
A insegurança alimentar abrange desde a
alimentação de má qualidade, passando pela instabilidade no acesso a alimentos,
até a fome.
Do total de 72 milhões de lares
brasileiros, 15% enfrentavam insegurança alimentar grave, que acontece quando
há redução da quantidade de alimentos disponíveis para as crianças.
Considerando a média de 2,9 moradores por
domicílio no país, são pelo menos 31,3 milhões de brasileiros vivendo em lares
onde há crianças passando fome. E esse número é apenas uma aproximação, já que
os domicílios de baixa renda costumam ter mais moradores que a média.
A inflação acumulou alta de 6,1% em 12
meses até março. Mas os alimentos, que representam a maior parcela do consumo
dos mais pobres, subiram mais que o dobro disso: 13,87%, conforme o Índice de
Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), índice oficial de inflação do país.
Alguns itens básicos registram aumentos
de preço exorbitantes no período recente, caso do óleo de soja (com 82% de alta
em 12 meses até março), arroz (64%), feijão preto (51%), carnes (31%), batata
(25%), leite (16%) e gás de botijão (20%).
A taxa de desemprego chegou a 14,4% em
fevereiro, somando 14,4 milhões de desocupados, segundo o IBGE.
Esse percentual vai a 29,2% da população
em idade de trabalhar ou 32,6 milhões de pessoas, considerando também aqueles
que estão trabalhando menos do que gostariam, que desistiram de procurar
emprego ou que gostariam de trabalhar, mas por algum motivo (como ter que
cuidar dos filhos que estão fora da escola ou de idosos, por exemplo) não
estavam disponíveis. São os chamados subutilizados.
Como na década de 1950 em que escrevia
Carolina Maria de Jesus, todos esses problemas são mais graves paras as
mulheres negras.
Direitos básicos negados
“É como se o Quarto de Despejo estivesse
sendo reescrito novamente agora, nessas experiências que a gente tinha a
esperança que mudassem ao longo desses 60 anos”, diz Eliane da Conceição Silva,
socióloga que estudou a violência social brasileira na obra de Carolina Maria
de Jesus em seu doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Segundo a pesquisadora, a chamada
violência social é resultado de um conjunto de desigualdades existentes na
nossa sociedade.
“É essa estrutura desigual que resulta em
que uma parcela significativa da população sofra com situações de privação, de
violência física e inclusive de morte, exatamente por terem seus direitos mais
básicos negados”, afirma Silva.
Na obra de Carolina, a fome, por exemplo,
é tão presente que é como uma personagem, chamada pela autora de “a amarela”,
uma referência à cor da bile dos estômagos vazios.
“No caso da inflação, o que ela sente é o
pouco dinheiro que ela consegue cada vez comprando menos coisas”, observa.
Segundo a socióloga, Carolina faz uma
reflexão sobre como a democracia se enfraquece à medida em que as pessoas não
têm condições de se alimentar e tem uma consciência de que isso tem relação
direta com quem está no poder.
“Ela chega a criticar em alguns momentos
que os políticos, quando querem se eleger, falam do custo de vida, que vão diminuir
os preços, sabendo que, com isso, vão conseguir tocar o coração dos mais
pobres”, destaca a pesquisadora.
“Mas, depois de eleitos, ‘nos olham com
olhos semicerrados e esquecem as promessas que foram feitas.'”
A inflação na década de 1950 e em 2021
“Antigamente era a macarronada o prato
mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a macarronada. São os novos
ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês, feijão e arroz, nos
abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes.
Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que
estão no quarto de despejo”, escreve Carolina, em 23 de maio de 1958.
Irislania Emiliana Viana, de 31 anos,
vive com seus nove filhos e o marido em Valparaíso de Goiás, numa casa com
apenas dois cômodos. Seu bebê tem 10 meses e a filha mais velha, 16 anos. Ela e
o companheiro estão desempregados.
“Meu marido é pedreiro, mas já tem mais
ou menos uns sete, oito meses que ele não consegue trabalho” conta Irislania.
“Eu sempre fiquei em casa, mas fazia uma coisinha aqui, uma coisinha ali para
vender, para fazer um dinheiro a mais. Com a pandemia, eu não pude mais
trabalhar por causa das crianças, está perigoso para mim e para elas”.
Segundo ela, a família atualmente tem que
escolher entre comer ou comprar o gás de botijão, que em muitas cidades do
Brasil já ultrapassa os R$ 100 neste mês de maio.
“Estou cozinhando à lenha. A gente está
sem condições de comprar gás. Quando a gente faz um dinheirinho — às vezes meu
marido faz um biquinho aqui, um biquinho ali — no preço que que está o gás, ou
a gente compra o gás, ou compra alimento”, relata.
Irislania sente no dia a dia a redução do
auxílio emergencial distribuído pelo governo federal, mas ainda assim se diz
grata pela ajuda.
“Recebi o auxílio ano passado. Neste ano,
veio R$ 150. É pouco, mas eu não vou reclamar não, porque pelo menos a gente
consegue comer, fazer umas comprinhas.”
‘O Quarto de Despejo ainda é uma realidade’
“O Quarto de Despejo, apesar de ter sido
publicado há 60 anos, ainda é uma realidade”, avalia Vera Eunice de Jesus,
professora da rede pública de São Paulo e filha de Carolina.
“Sou professora de educação infantil e
tenho percebido como as crianças chegam à escola”, conta a educadora, que dá
aulas na Vila São José, no extremo Sul da capital paulista.
Ela relata, por exemplo, que tem um aluno
de 5 anos que bate na professora e nos colegas e, quando é questionado por que,
grita que está com fome.
“Depois que ele come, é outra criança. A
gente sabe que ele almoça na escola e vai tomar café só no outro dia na escola.
As únicas refeições que ele faz são ali.”
Na pandemia, Vera Eunice e as outras
professoras têm ajudado a organizar a distribuição de cestas básicas para as famílias
mais carentes da comunidade.
“A gente marca 9h da manhã para a
retirada das cestas. Quando dá 6h, já tem fila. Eu falo para eles: ‘Ainda é
cedo.’ E eles dizem: ‘Não se incomode não, a gente está bem aqui.'”
“A minha mãe era assim. Quando ela sabia
que iam dar uma cesta, um arroz, um brinquedo, ela ia atrás. Nessas mesmas
condições que eu vejo o povo hoje, no século 21.”
Distante da Zona Sul, no Jardim Keralux,
bairro do extremo Leste de São Paulo, às margens do rio Tietê, assim como a
antiga favela do Canindé, onde viveu Carolina, a realidade é semelhante.
“Com a pandemia, piorou muito a situação
por aqui. Do início desse ano para cá, vemos que os poucos que tinham renda
acabaram ficando sem”, afirma Edinilson Bastos, diretor do Instituto União
Keralux, uma organização de assistência local.
Ele conta que, no ano passado, a entidade
contou com a ajuda de uma empresa para distribuir 950 cestas básicas por mês.
Neste ano, mesmo com o aumento da procura dos moradores por alimentos, a
parceria não se repetiu.
“Infelizmente, a situação se agravou para
todos e as empresas que no ano passado ajudaram, neste ano também sofreram as
consequências da crise. Então, estamos vivendo de algumas doações esporádicas,
que não estão suprindo a demanda”, lamenta.
Sucata
como fonte de renda
Assim
como Carolina fez na década de 1950, quem está sem renda atualmente também se
vira como pode para garantir o sustento próprio e dar de comer aos filhos.
“Minha
mãe sempre trabalhou muito e era muito focada em que nós estudássemos”, conta
Vera Eunice, atualmente com 67 anos. “Eu saía com ela para catar papel, sempre
saí, minha mãe nunca me deixava.”
Em 27
de maio de 1958, Carolina Maria de Jesus escreveu em seu diário: “Comecei a
sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que
quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel.”
“Ia
catando tudo que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O
Leon pegou o papel, recebi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para
comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estômago reclamava e
torturava-me”, registrou naquela data a escritora.
Em 23
de abril de 2021, Jessica Fernanda Santana, de 30 anos e moradora de Itapira,
no interior de São Paulo, conta: “Meu marido trabalhava como lenheiro, cortando
eucalipto, mas a serraria fechou com a pandemia. Agora estamos coletando
sucata.”
“Tenho
um menino de 8 anos e faz uns quatro meses que eu estou fazendo esse serviço.
Nesses quatro meses, juntamos um dinheirinho e compramos uma caminhonete
parcelada. Agora, eu tenho a caminhonete para catar e boto no Facebook pedindo
para as pessoas me ajudarem, porque na rua não se acha, que aqui tem muito
catador.”
“Cato
papelão, alumínio, ferro, latinha, janela, de tudo um pouco. Conseguimos tirar
uns R$ 1 mil por mês, mas é bem menos do que meu marido fazia como lenheiro.
Então, o pessoal ajuda com mantimento. Às vezes, até posto no Facebook pedindo
alimento também, porque eu moro de aluguel, aí tem água, luz, tem a caminhonete
para pagar. Se for depender só da sucata, não dá conta. Então, eu peço ajuda
pro povo.”
“Ano
passado, eu recebi o auxílio, neste ano, não recebi ainda. Nem sei se vou
receber, porque diz que não é todo mundo que está incluído. Se vier, vai ajudar
um pouco, que é um dinheirinho a mais, que a gente não esperava. Mas, de R$ 600
para R$ 250, é muita diferença.”
Poucos
dias depois de contar sua história por telefone à BBC News Brasil, Jessica
descobriu uma doença grave e precisou deixar a coleta de sucata, única fonte de
renda da família, enquanto o auxílio emergencial não vem.
‘Hoje
são milhares de Carolinas’
Para
a socióloga Eliane da Conceição Silva, a repetição em 2021 de experiências
vividas por Carolina Maria de Jesus da década de 1950 revela o quanto o Brasil
progrediu pouco enquanto sociedade e o quanto pouco mudaram as estruturas
sociais que fazem com que mulheres e negros sejam os que mais sofram em
situações de crise.
“O
que efetivamente mudou é que essas pessoas que estão sofrendo com essa situação
estão cada vez mais tendo formas de dizer o que estão passando”, avalia a
pesquisadora.
“Aquele
silêncio, que a Carolina foi a primeira a romper, hoje já está sendo mais
questionado. Vemos denúncias não só de quem está de fora, mas de dentro,
através das redes sociais e de outras formas de divulgação e de produção
cultural.”
Vera
Eunice, a filha de Carolina, tem avaliação similar. “Vejo que hoje as
comunidades têm mais Carolinas. Muitas mulheres que são mães solteiras, que
trabalham, que cuidam dos seus filhos. Muitas que escrevem, muitas que estudam.
Acho que esse hoje é o diferencial.”
Fonte:
https://www.geledes.org.br/ate-o-feijao-nos-esqueceu-o-livro-de-1960-que-poderia-ter-sido-escrito-nas-favelas-de-2021/.
Acesso em 17/05/2021.
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