IRMANDADE DA BOA MORTE: UM BREVE HISTÓRICO






Anualmente, dezenas de mulheres cruzam as ruas de Cachoeira, cidade histórica do recôncavo da Bahia, a cerca de 117 quilômetros de Salvador, com a missão de reforçar junto com a comunidade uma das festas seculares mais fortes da terra: a Irmandade da Boa Morte e Glória.

Celebrado há mais 200 anos, o festejo sempre ocorreu em agosto, mês dedicado à Nossa Senhora. Neste ano, o evento, que é considerado Patrimônio Imaterial da Bahia desde 2010, começa nesta terça-feira (13) e segue até o próximo sábado (17). [Veja programação no final da matéria]
“Pedir uma boa morte sempre se fez presente. Quando os negros não eram bem tratados, sempre pediam uma boa morte. Pedíamos a interseção de Maria, para morrer bem junto a ela”, disse Nilza Prado, que tem 78 anos e há 22 foi iniciada no grupo.

Atualmente, a festa atrai pessoas de diversos lugares, incluindo estrangeiros. Apesar disso, as irmãs lutam para que o grupo não acabe.

“É uma festa muito grande, vai muita gente. Mas lutamos para que ela continue. A festa tem muita resistência. Nossa luta é para preservar a irmandade e a sociedade da Cachoeira e os participantes nos ajudam a fazer isso”, contou Zelita Sampaio, uma das 30 irmãs.

A Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte é uma confraria religiosa afro-católica que, na sua origem, e por muito tempo, foi responsável pela alforria de inúmeros escravos. Neste século, o grupo continua com a missão social, mas dedicada principalmente à educação.

Na literatura, não há uma data precisa sobre o surgimento da irmandade em Cachoeira. No entanto, há indícios de que os primeiros sinais da manifestação datam de um intervalo entre 1810 a 1840.

“Os primeiros sinais do grupo na Bahia são de 1810, em Salvador, a partir de escravas vindas da África, mas o grupo acaba extinto na capital, por conta das perseguições. Por isso, algumas irmãs foram para Cachoeira, em 1840. Elas se interessaram pela economia do recôncavo que estava boa. Assim, a Irmandade em Cachoeira foi criada”, diz Valmir Pereira, produtor cultural, que trabalha na Irmandade há 24 anos.

Em Cachoeira, as irmãs se instalaram na casa que hoje é conhecida como “estrela”, de nº 41, na Rua Ana Nery, onde começou o trabalho social.

“Primeiro, as irmãs trabalharam como comerciantes para comprar a liberdade dos negros. Depois, lutaram ainda mais para dar ao negro uma posição digna. Eles não tinham direito a nada, mas elas criaram esse lugar”, afirmou Valmir.

Nessa época, quando o grupo chegou a ter 150 integrantes, a posição de irmã era passada de mãe para filha. Mas, apesar do número expressivo, essas mulheres precisaram lutar para conseguir cultuar uma santa católica, sem deixar de lado a ancestralidade.

“Elas celebravam a santa católica, mas procuravam uma [igreja] com história similar a de um orixá. Mas, pra isso, elas saíam fazendo missas de igreja em igreja. Nem todos os padres eram generosos, alguns não abriam as portas para elas. Não as aceitavam como negras, nem a matriz religiosa que herdaram”, completou Valmir.

Em meio às dificuldades, mas com amor ao legado, o grupo continuou. E, desde então, seguiu lutando pela aceitação e reconhecimento. Nesse sentido, um dos pontos mais marcantes aconteceu em 1970, quando a imagem da irmandade vai para fora do país, através de fotografias.
A partir disso, entre 1980 e 1997, já conhecidas, o grupo ganhou os imóveis, através de doações, que hoje são utilizados como a sede do grupo e a Capela da Irmandade da Boa Morte, na Rua 13 de Maio.

Agosto: Quando a história acontece

Além da trajetória social, as irmãs organizavam os festejos para a santa. Sempre uma vez ao ano, durante uma semana do mês de agosto. Os preparativos, no entanto, começavam antes.

No último domingo de julho de cada ano ocorre uma eleição, onde são escolhidas quatro irmãs com a missão de administrar a festa: a escrivã, tesoureira, a procuradora-geral e a provedora. Em seguida, saem para arrecadar a esmola geral, para ajudar na produção da festa.
Neste ano, o cargo de provedora é ocupado por Nilza Prado. Cabe a ela a missão de cuidar da imagem de Nossa Senhora, dentro da própria casa.

“A santa sai da capela para ficar na casa da provedora. Não tem uma data especifica para isso. O dia é escolhido entre nós. A imagem só é levada de volta para a igreja no dia 12, anterior ao início da festividade, quando as irmãs vão da sede até a casa da provedora, rezam e depois fazem o caminho inverso, com a imagem”, afirmou Nilza Prado.

Cumprido o calendário “restrito”, é dado início à programação aberta ao público, que inclui missas, procissões, distribuição de comidas e samba de roda.

Resistência

“Ser filha de Nossa Senhora é uma missão de amor. Eu me sinto lisonjeada, abençoada por ser escolhida. A gente chora de emoção, de sentir que nossa senhora está nos abençoando e não podemos deixar isso acabar”, contou Nice Espíndola, que está há 10 anos na irmandade.

Além de Nice, o desejo de não pôr fim a tradição se estende pelo grupo. Se no começo o número de irmãs chegou a 150, o atual não é tão expressivo. Aumentar a quantidade de mulheres na equipe foi uma solução posta em prática neste ano para mudar o quadro.

“Estávamos diminuindo em tamanho. Nós éramos 22 até o ano passado. Só que a maioria não consegue mais caminhar por causa do esforço. Por isso, a gente precisou colocar mais gente para dar continuidade à irmandade. Colocamos mais irmãs para o grupo não acabar. Isso não pode acabar”, disse Nilza Prado.

Para ser uma das irmãs, a candidata precisa ser negra e ter a partir de 35 anos. Primeiro é feito a candidatura, e depois a avaliação pela equipe. Caso seja aprovada, a candidata passa por alguns estágios até assumir a função, que tem mudado ao longo do tempo.

Assim, a função de cada irmã é manter a cultura. Elas se organizam para dar continuidade à festa, mas não deixam de lado o cunho comunitário.

“O papel da Boa Morte atualmente é abrir o espaço para receber as pessoas, principalmente alunos de escolas. Nosso papel hoje é de levar a cultura para as pessoas”, conta Nice.

“Na nossa sede, oferecemos várias oficinas para as pessoas da comunidade. Todo mundo participa e sente o amor de Nossa Senhora. Seguimos com o apoio de todo mundo para levar o amor. Seguimos com a tradição”, completa.

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