Nessa edição zero, o Brasil de Fato Bahia homenageia Carlos
Marighella, um negro baiano que dedicou a vida para lutar pela liberdade e por
uma nova sociedade. Um homem a frente do seu tempo, que deixou um legado de
luta e resistência. No último dia 5 de dezembro completou-se 106 anos de seu
nascimento.. Entrevistamos seu filho, Carlos Augusto Marighella, que contou um
pouco do Marighella filho, irmão e pai amável, solidário, aluno brilhante,
poeta e amante das manifestações populares.
A ORIGEM DE MARIGHELLA
Carlos Marighella era uma
pessoa comum, uma pessoa do povo. A nossa família é fruto da união de um
operário italiano, Augusto Marighella, que veio para Salvador e trabalhou como
mecânico, e uma negra hauçá vinda de Santo Amaro, Maria Rita do Nascimento.
Eles casaram em Salvador, formando uma família com oito filhos. Moravam na
Baixa dos Sapateiros, na Rua Barão do Desterro, onde meu avô tinha uma oficina.
Meu pai foi o filho mais velho deles.
Quando meu avô chegava de noite em casa, trazia o
jornal que meu pai gostava de ler. Trazia uma vela, porque Salvador não tinha
luz à noite. Meu pai dizia que aguardava ansiosamente, porque era o momento que
tinha pra ler e tomar conhecimento das noticias.
UM ALUNO BRILHANTE
Vó Mocinha, uma das minhas
avós “postiças”, contava que, desde pequeno, meu pai demonstrou ser uma pessoa
especial e inteligente. Ela dizia que quando o levava para a escola, ele ia
segurando a mão dela e lendo os letreiros de ônibus, anúncios em postes, e
parava na frente da banca de revistas e lia os jornais.
Essa foi a primeira grande marca de meu pai. A
ponto de, na escola secundária, responder a prova de física em versos e isso
foi uma coisa inusitada. A prova ficou exposta no Colégio Central, como uma
homenagem ao “aluno brilhante”.
“Doutor, a sério falo, me permita,
Em versos rabiscar a prova escrita.
Espelho é a superfície que produz,
Quando polida, a reflexão da luz.
Há nos espelhos a considerar
Dois casos, quando a imagem se formar.”
(Trecho da prova de Física respondida em versos em
1923)
DE ESTUDANTE DE ENGENHARIA
AO PARTIDO COMUNISTA
Como estudante na Escola de
Engenharia da Bahia, Marighella foi correspondente da Revista Brasileira de
Matemática, uma revista cientifica que discutia problemas de matemática.
A Escola de Engenharia, recentemente, me chamou
porque selecionaram os 100 engenheiros mais importantes da Escola. Marighella
consta como um dos nomes mais brilhantes, por seu desempenho e suas notas. Ele
foi o único desses 100 que não se formou.
Um dia lhe perguntam: “Mas Marighella por que você,
com um futuro tão brilhante, abandonou essa carreira, que lhe daria muita
glória?”. Ele disse: “Abandonei a carreira para me dedicar à atividade
politica, porque não via honra em ser engenheiro num país em que as crianças
precisam trabalhar para comer”.
O Brasil tinha mais da metade da população
analfabeta. E foi isso, provavelmente, que fez Marighella ingressar no partido
comunista.Ele sempre teve esse espirito libertário, essa vontade
transformadora. Entrou no PCB – Partido Comunista do Brasil e saiu da Bahia
para ser o “Guerrilheiro que incendiou o mundo”. E dedicou toda a sua vida a
luta politica a partir daí.
DEFENSOR DA LIBERDADE E
INIMIGO DA DITADURA
Em 1932, foi preso por um
poema sarcástico sobre o governador Juracy Magalhães, um interventor nomeado
por Getúlio. Ainda na ditadura Vargas, foi preso novamente, passando nove anos.
Saiu da prisão e se elegeu deputado Constituinte. Foi eleito em 1946 e em 1947
o PCB foi cassado, com o acirramento da disputa entre EUA e URSS. Era como uma
democracia de “araque”.
Então, Marighella foi para a clandestinidade até
1955, quando Juscelino foi eleito e passaram a uma semilegalidade. Nasci em
1948 e só conheci meu pai quando tinha sete anos, apesar de conviver com a
família. Minha mãe não conseguia me registrar como Marighella. E a escola
ficava “aporrinhando” minha mãe para mandar o documento. Fiquei até essa idade
sem documento.
Veio o golpe de 64. Foi terrível para nós. Fui
separado de meu pai novamente. Morava com ele no Rio de Janeiro. A polícia
invadiu o apartamento que morávamos, e levou tudo, até livros e roupas. Meu pai
e Clara [a esposa dele] conseguiram fugir. Ele foi preso e sua foto saiu nos
jornais. Aí fui identificado como um Marighella. Fui comunicado que não poderia
estudar mais na escola por ser filho de um subversivo e voltei para a Bahia.
Naquela época ser um Marighella era não poder
trabalhar. Eu mesmo passei na Petrobras e fiquei um ano até que descobriram que
eu era filho de Marighella e me demitiram.
Em 1969, meu pai foi assassinado em uma emboscada
em um Convento em São Paulo. E muita gente dizia: “Como que ele foi ao
convento, sabendo que o momento era de risco?”. Mas ele foi ao Convento porque
queria tirar os padres de lá. Imaginava que estavam correndo sério risco. Ele
tinha esse senso de responsabilidade e de solidariedade.
A morte dele foi comemorada pela ditadura, pois era
considerado seu “inimigo nº 1”. Não pela ameaça material que representava, mas
pelo exemplo. Ele foi uma pessoa que deu exemplo, se sacrificou para ser
coerente com sua postura politica. Era um incentivo a luta de resistência. A
ditadura temia que o exemplo se propagasse.
APRECIADOR DAS
MANIFESTAÇÕES POPULARES
Apesar do estigma de
subversivo e terrorista, meu pai era carinhoso, uma pessoa risonha, fazia
poemas, gostava de música e carnaval. Você via na expressão dele que gostava
das manifestações populares. Tem uma história do dia que foi na Mangueira e
ficou extasiado com o samba. Achava impressionante um povo pobre que vivia em
barracos e conseguia se reunir pra cantar e dançar. Acho que se via naquelas
pessoas. Ele que veio de uma família pobre e negra.
Chegou ao Rio e viu esses mesmos pretos ali
sambando, alegres. Eu acho que ele via nessa expressão de felicidade um
incentivo para ele lutar. É melhor lutar com pessoas alegres do que tristes,
não é? A luta era a mesma, mas ele tinha certeza que estava lutando por um povo
preparado para viver a felicidade, um mundo diferente daquele que essas pessoas
viviam.
O LEGADO DE MARIGHELLA
Marighella foi uma pessoa
grandiosa. Ao resgatar a memória dele, estamos prestando um grande serviço. São
símbolos que podem nos inspirar para realizar as transformações na sociedade,
fazer do Brasil um país novo, com um novo homem e nova mulher.
A família Marighella gostaria que a casa na Baixa
dos Sapateiros, que hoje está em ruínas, virasse um memorial, permitindo que
todos que reconhecem e tem orgulho de Marighella tivessem esse espaço vivo.
Em um evento que debateu a importância das eleições
no Brasil, uma estudante do Colégio Carlos Marighella disse que, assim como meu
pai, tinha vindo de uma família negra, pobre e da periferia e que o via como
uma inspiração. Ela afirmou que, seguindo os seus passos, poderia realizar os
sonhos que ele não conseguiu, que também eram os sonhos dela. Isso para mim foi
uma síntese do porquê devemos resgatar a memória de Marighella.
Fonte: https://www.geledes.org.br/carlos-marighella-o-negro-baiano-que-incendiou-o-mundo/
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