Pierre Verger escreveu um clássico: “Orixás: Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo”, no qual defendia que essa religião está ligada a uma noção de família numerosa, que se origina de um mesmo antepassado e engloba vivos e mortos.
Para o autor, o orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado que durante sua passagem pela terra estabeleceu vínculos que lhe asseguraram um controle sobre fenômenos da natureza, como o raios e trovões, as águas dos mares, rios e das chuvas, as árvores, pedras e minérios. Bem como o domínio de importantes atividades sociais, como a caça e a pesca, a metalurgia, o exercício do poder, a guerra, a maternidade, a agricultura.
Quando se considera essa noção de ancestral divinizado, é bom que se diga que realmente todos os orixás tiveram sua passagem pela terra. Foram portadores de um enorme axépessoal. Foram reis e rainhas, grandes guerreiros e guerreiras, caçadores, sacerdotes, curandeiros e feiticeiros, pais e mães.
Foram homens e mulheres que, pela magia dos seus feitos, bravura, bondade, justiça, retidão, destemor, astúcia e outros predicados, não se submeteram à morte, encantando-se como divindades, como deuses que se personificam nas forças vivas da natureza. Os orixás são o poder que sustenta toda a existência e a vida na terra.
São perfeitos? Não, são humanos. Portanto, embora tenham sido associados a santos católicos por força do sincretismo, os orixás jamais podem ser enquadrados na lógica cristã, nem mesmo compreendidos dentro dos padrões ocidentais.
São divinos, mas estão longe de ser santos, pois experimentaram a vida, seus prazeres e suas dores. Amaram e odiaram. Entregaram-se a paixões desenfreadas. Lutaram guerras sangrentas. Cometeram e corrigiram injustiças. Acertaram e erraram. Todos os orixás detêm um poderoso axé. O domínio que exercem sobre a natureza é o reflexo das histórias que viveram e que possibilitaram tornar eternos os seus atos.
Ogum, rei de Irê e senhor da guerra, tornou-se orixá ao perceber que em um momento de cólera irrefletida acabou por massacrar todos os habitantes de sua cidade. Foi tomado por um profundo arrependimento e decretou que, por cometer tamanha atrocidade, não merecia mais viver. Fincou duramente sua espada no solo e, quando o chão se abriu, desapareceu sob a terra e renasceu como orixá.
Todas as divindades do panteão ioruba passaram por processos semelhantes. No momento de sua “morte”, ou seja, quando o sopro se desprendeu do corpo, o que restou foi o axé em estado de energia pura, que acabou eternizado ou se encantando num fenômeno da natureza.
Mesmo Oxalá, o grande orixá da criação, falhou em sua missão de criar o mundo. Por falta de humildade, recusou-se a fazer as devidas oferendas a Exu, o primogênito do universo, e no momento de cumprir sua tarefa foi acometido por uma sede sem fim e, furando o tronco de uma palmeira, sorveu a seiva e embriagou-se.
Odudua, o herói civilizador, tomou para si a missão e criou a terra. Como consolo, Oxalá recebeu a incumbência de criar os seres humanos, mas não observava suas restrições à bebida, e por vezes criava seres defeituosos. Portanto, até Oxalá, o mais elevado dos orixás, cometeu suas falhas, está longe de ser perfeito, mas tem sua divindade reconhecida e respeitada por todos.
Do alto de sua sabedoria, com quase um século de vida, Mãe Stella de Oxóssi, ialorixá do Axé Opô Afonjá, de Salvador, nos ensina que a vida é boa e gozá-la convém. Os orixás sabem disso, pois seu grau de humanidade vai muito além da capacidade de ser bondoso ou generoso, compreensivo ou tolerante, que, aliás, são valores que preconizam e apreciam.
Orixás são humanos por serem passíveis e passionais, são como nós e por isso nos entendem, nos aceitam e nos amam.
Orixá não é espírito em evolução nem anjo da guarda. E nesses tempos de crescente intolerância religiosa, de desrespeitos desmedidos à legislação e até mesmo a cláusulas pétreas de nossa Constituição, é bom que se ratifique que orixá não é demônio.
São as divindades do candomblé. São deuses e deusas que sobreviveram à escravidão e se mantiveram na diáspora. Os orixás vivem em seus filhos e filhas, nesses fiéis que entregam seus corpos ao transe e tornam tangível o axé divino. Deuses humanos, plenos de compreensão e humildade. Deuses que ajudam, mas também dão as costas, pois um orixá não veio ao mundo pra fazer nem o bem nem o mal. Veio para fazer o que é justo.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/orixa-nao-e-santo
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