João mora e trabalha em São Paulo. O departamento de recursos humanos da empresa em que João trabalha não consegue entender um fenômeno que ocorre com seus funcionários nordestinos. Eles querem todos tirar férias no mês de junho. Como assim? Junho? Enquanto os outros se estapeiam por dezembro e janeiro, João e seus colegas querem folgar justo no inverno?
Quadrilha: com origem em cortes europeias, aqui foi reinventada e adotada por camadas populares
(Foto: Robson Mendes/Arquivo Correio) |
Um dia, o chefe de João não aguentou de curiosidade e perguntou a ele: “João, porque diabos você e os outros ‘paraíbas’ querem tirar férias em junho?”. João respondeu na lata: “Oxe! Pra passar o São João com a família”. Piorou. O chefe criava outra dúvida. “O que significa passar o São João com a família?”.
Mas será que só os sulistas desconhecem as festas juninas? O fato é que há muitos outros porquês sobre o São João que nem mesmo nós, nordestinos, entendemos. Por que o São João é tão forte no Nordeste? Por que é em junho? Por que dançamos forró? Por que tomamos licor? Por que acendemos fogueira? Por que quadrilha? O CORREIO preparou um guia para você entender tudo da festa.
Por que fogueira?
O porquê da fogueira vem em primeiro lugar porque ele tem tudo a ver com a origem dos festejos. Há duas versões, diz Janio Roque de Castro, professor de geografia cultural da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). A primeira é de que se faziam fogueiras na Europa para se comemorar o ciclo das colheitas, o início do solstício de verão no hemisfério Norte. Algo ligado ao paganismo e ao cultivo da terra. Mas, como somos de um país de predominância católica, aqui predominou a origem religiosa.
Fogueira celebra João Batista
(Foto: Arquivo Correio) |
A versão católica diz que Maria tinha uma prima chamada Isabel, esposa de Zacarias. Isabel engravidou e teve um filho chamado João — João Batista. Pra comemorar seu nascimento, a família fez uma fogueira. “Mas a questão não é a manifestação cultural em si, e sim como ela chega em determinados lugares e contextos locais e regionais. Quando o São João chega aqui, ele ganha as especificidades regionais”, explica Janio. Tanto que, com o passar do tempo, a fogueira ganhou contornos místicos e supersticiosos. As pessoas acreditavam que não acender a fogueira era pecado.
“Como assim não comemorar o nascimento de João Batista?”. Mas não ficava só nisso. Muitas vezes se colocava um arbusto na frente da fogueira - chamado de raminho ou patinho. Se o ramo caísse pra frente da casa, alguém ia morrer naquela casa em um período de um ano. Se caísse pro lado da rua, ia morrer alguém na vizinhança.
“Meu pai dizia que, se não acendesse a fogueira, o Cão (Diabo) ia mijar na porta de casa na noite de São João. Tinha que acender a fogueira para espantar os males. Aí você vai ver a ligação que isso tem com a origem europeia. Lá, também acendia a fogueira para espantar os males da colheita. Tem um elo aí”. Hoje, muita gente acende a fogueira pra simplesmente assar um milho verde, reunir a família, dançar um forrozinho. “Porque eu ainda vejo tanta fogueira? Porque prevalece a dimensão profana. Determinadas coisas rompem o tempo porque são ressignificadas”.
Por que São João?
A pergunta é: porque a festa nessa dimensão não acontece com outros santos? Pela importância tanto religiosa quanto popular de São João. Na verdade, quando se trata de festejos juninos, estamos falando de três santos: Santo Antônio, São João e São Pedro.
Mas, o culto a São João tem duas particularidades. Primeiro porque estamos falando do João primo de Jesus, que anunciou sua chegada e que o batizou nas águas do Rio Jordão, explica dom Estevam dos Santos Silva Filho, bispo Auxiliar da Arquidiocese de Salvador.
“Ele foi considerado o maior de todos os profetas. Inclusive, Jesus disse que, entre os nascidos de uma mulher, ninguém foi maior do que João”, destaca Dom Estevam. O outro detalhe é que São João é o único santo do qual se comemora o nascimento. Nas outras datas de santos, são prestadas homenagens pela morte. Por isso, São João é tempo de comemoração.
“Você já observou em alguns quadros aqui no Nordeste a imagem de São João? É a imagem dele menino. Os outros são adultos. Até nas composições estéticas você vê São João menino. Essa é uma imagem ‘nordestinizada’, você observa que ele tem um cabelo encaracolado, a cabeça arredondada e segura um carneirinho”.
Por que em junho?
Exatamente pelas coincidências de datas. Tanto as colheitas na Europa quanto o nascimento de João e morte de Santo Antônio e São Pedro são em junho. “O solstício de Verão na Europa é quando? Em junho. A festa das colheitas? Junho. A Igreja Católica instituiu o dia de nascimento de João Batista como 24 de junho. Aí pronto”, conclui o pesquisador.
Por que no Nordeste?
Pela forte religiosidade popular dessa região. Antes dos festejos ganharem esse contorno, já havia o culto aos santos. O que ocorreu de novo? Vieram da Europa pra cá influências das festas juninas de lá. Influências essas que se fortalecem no século XVIII.
“A Europa colonizadora trouxe pra cá o catolicismo oficial, romanizado. Mas no século XVIII chegam outras influências, inclusive festivas. Chegaram e ganharam a nossa cara”, contextualiza Janio de Castro. Acontece que essas influências chegaram em várias partes do Brasil. Só que no Nordeste encontraram uma forte religiosidade popular.
“Estou dizendo que é fraca em outras regiões? Não. Mas nada se compara ao que se tem aqui. Aqui temos o fenômeno das grandes romarias. O catolicismo popular é muito forte aqui. E os santos do ciclo junino são muuuuuito populares. Tem gente que comemora São João no Centro-Oeste ou em Minas? Tem. Mas nada igual a isso aqui. Tanto na dimensão sagrada quanto profana. Mesmo na dimensão religiosa, não tem a mesma dimensão”.
Por que milho e amendoim?
Se fala muito dos três santos juninos, mas tem um quarto santo que vem antes deles: São José, homenageado no dia 19 de março. No dia de São José, o nordestino espera a chuva pra plantar o milho e o amendoim. Três meses dali pra frente, em junho, ele colhe o que plantou.
Milho: semeado em março(Foto: Marina Silva/Arquivo Correio)
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Independente de festa junina, o nordestino sempre plantou milho e amendoim no mês de março e colheu no mês de junho para comercializar. “Como nessa época de junho é época da colheita do milho, existe uma culinária extensa, principalmente de doces”, afirma o antropólogo Raul Lody, especialista em antropologia da alimentação e curador do Museu da Gastronomia Baiana.
“O milho é um cereal da América e os incas, os maias, todos os povos há sete, oito mil anos, não só produziam de uma forma organizada a agricultura de milho, como usavam o milho dentro de sistemas alimentares. Para esses povos fundamentais das Américas, o milho representa também o ouro e o sol. A fogueira é o sol. O milho é o sol e é o ouro”, relaciona Lody.
Por que licor?
Aí, novamente, duas versões. Uma não exclui a outra. E as duas concordam que, se tem festa, tem bebida. A primeira, do professor Janio de Castro, é de que o licor, como é feito para o São João, seria uma bebida tipicamente nordestina.
Licor: são usadas frutas típicas
(Foto: Antonio Saturnino/Arquivo Correio) |
“Que tipo de bebida eu posso fazer na minha casa a partir das frutas do meu quintal? No Sul, por exemplo, você tem a festa da uva. Porque a uva é um produto tradicional daquela região. Mas aqui a bebida é o licor de alguns produtos e frutas tipicamente do Nordeste. Então, eu compro a bebida, pego o jenipapo, coloco na infusão e tá pronto o licor. A festa do queijo é na Bahia? Não, é em Minas. As pessoas aqui consomem queijo? Consomem. Mas aqui não tem a relação com o fazer que eles têm”, compara Janio.
Para o antropólogo Raul Lody, o licor tem relação com as bebidas e doces historicamente produzidas por religiosos. “Esses licores vieram também dos mosteiros, então tem essa tradição, como de doces, desde a Idade Média, toda essa variedade enorme de doces a base de ovos, açúcar, canela, cravo. Isso é desenvolvido até hoje, muitos mosteiros fazem até hoje seus pastéis, bolos, licores. As bebidas alcoólicas são celebrativas dos grandes feitos”, resume Lody.
Por que forró?
A expressão “forró” envolve outra polêmica. Alguns dizem que se refere à expressão “for all” (para todos, em inglês), originária dos ingleses que vieram para o Brasil construir as ferrovias e conheceram as festas animadas com o novo ritmo.
Forró: ritmo popular nordestino tomou naturalmente conta da festa
(Foto: Evandro Veiga/Arquivo Correio) |
Outros garantem que se trata de uma corruptela da palavra “forrobodó”. Mas por que predomina o gênero durante o São João? Porque ele é genuinamente nordestino. “Onde é que mais se comemora o São João? No Nordeste. Então, uma coisa está ligada a outra”, acredita Janio de Castro.
O forró tradicional, explica Jânio, foi difundido a partir dos anos 50. Luiz Gonzaga teve um papel importante nisso. “Na década de 50, o São João estava arraigado no imaginário das pessoas. Aí aparece esse pessoal cantando esse Nordeste festivo. O jeito de ser do nordestino tinha que aparecer na grande festa do Nordeste”.
Por que ir de casa em casa?
“São João passou por aqui?”. A pergunta ainda hoje é anunciada nas portas das casas durante as festas juninas. Se a resposta for “sim”, a vizinhança entra para comer, tomar licor e, se for o caso, dança um forrozinho. A origem disso? “Em tudo aquilo que se liga à família, a gente pode ver uma conotação religiosa. Eu mesmo sou do interior, sou de Vitória da Conquista, e na minha rua os vizinhos se visitavam. Batiam na porta com alegria, dizendo ‘São João passou por aqui’.
E trocavam ali os licores e tudo. E isso ainda existe, isso é bom”, afirma Dom Estevam dos Santos Silva Filho. “E há um sentido religioso. Se formos olhar, a visita de Maria a Isabel. Quando Isabel abriu a porta, ela ficou tão feliz que o menino João exultou de alegria. E certamente Maria foi lá se confraternizar”.
Na visão do professor de Geografia Cultural da Uneb, Janio de Castro, as pessoas também passaram a aproveitar as festas juninas para visitar os parentes que às vezes não tinham tempo pra ver o ano todo.
“Hoje diminuiu porque além da casa e da rua, tem a praça. Repare que ‘São João de casa em casa’ mudou o dia. É mais dia 24, porque dia 23 o pessoal está se arrumando em casa pra ir pra praça. No dia seguinte, já começa a ir nas casas. O São João foi reinventado em vários espaços”.
Seja lá como for, essa tal passagem de São João sempre rende boas histórias - e, em alguns casos, até certos traumas. Que o diga o artista plástico Carybé. Em algum momento pós-1938, mas logo na estreia dele no São João, Carybé foi experimentar a tradição. E, de quebra, levou a pior consequência dela. “Ele teve a pior ressaca da vida, que até o pé de jenipapo não conseguia olhar durante um bom tempo. Nunca mais ele tomou licor de jenipapo”, lembra a filha do artista, Solange Bernabó.
Por que bandeirola?
As bandeirolas têm origem no sagrado, nas festas para os santos. Elas eram colocadas nos arredores das igrejas para as festas religiosas. Independente de qual época fosse, a bandeirola sempre enfeitou a parte externa dos templos católicos.
Bandeirolas: colocadas ao lado das igrejas para as festas religiosas(Foto: Arquivo Correio)
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No caso dos festejos juninos, as bandeirolas já eram colocadas para os três santos de uma vez. Com o passar do tempo, deixou de ser religiosa e passou a ser uma composição estética típica do período. “Mas a origem dela é no entorno da igreja. Aí ganhou as festas de rua e da praça pública”, afirma Janio de Castro.
Por que quadrilha?
Segundo alguns pesquisadores, a quadrilha é uma dança europeia de influência austríaca ou francesa, por isso as palavras “anarriê”, “alavantú” e “balancê” se integram às apresentações. Mas, o mais curioso é a reivenção da dança pelos nordestinos. A quadrilha chega como algo chique, da corte francesa, e aqui caiu nas camadas populares.
“As quadrilhas francesas considerariam o chapéu de palha um absurdo, por exemplo. Chapéu de palha para dançar uma dança que era da corte? Que maluquice é essa?”, questiona o professor Janio de Castro. “Aqui as pessoas colocam trapos na roupas para dizer que é algo típico da roça, das camadas mais pobres. Quer dizer, isso é uma forma de reinventar, inclusive esteticamente, uma dança”.
As palavras passam a ser aportuguesadas. Alguns passos como “olha a cobra!” são colocados. Tem também o passo “caminho da roça”. “Tem alguma região da França em que se dance quadrilha, pra eu conhecer a quadrilha original? É complicado. Porque o conceito de original é extremamente complicado. Porque a quadrilha aqui já é fruto de várias contaminações e influências. Você não vai encontrar uma quadrilha como a nossa na Europa, apesar de a origem ter sido europeia”.
Por que fogos de artifício?
Grande parte de muitos fogos de artifício tem origem na China e na Europa. Alguns afirmam que eles são usados no São João porque também anunciaram o nascimento de João Batista. Janio de Castro discorda “Não tem nada comprovado em relação a isso. Foi a fogueira que comemorou o nascimento de João”. Os fogos se incluíram depois, como uma dimensão lúdica da festa.
“É pra anunciar a festa em si”, acredita Janio. No caso dos balões, diz o professor, eram tocados também como um símbolo anunciador. Era hora de mostrar que chegaram os festejos juninos. “No novenário, as pessoas tocam em homenagem ao santo. Uma dimensão lúdico-religiosa-brincante-explosiva da festa”.
Por que espada?
No início, a espada não era solta, garante Janio de Castro. O artefato era amarrado em um ponto fixo e ficava girando. Com o passar do tempo, a espada se tornou um objeto transgressivo no período junino. Ela ganhou as ruas e vieram as batalhas de espadas. Mas sempre foi um artefato pirotécnico desse período, pelo mesmo motivo dos outros fogos de artifício.
Espada: objeto transgressivo.(Foto: Arquivo Correio)
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“A espada surge dos busca-pés, surge dos fogos, que anunciavam a festa. O tipo de espada que se tem hoje é típico de Cruz das Almas”, afirma Jânio. Além dos acidentes que ano a ano envolvem espadeiros, não faltam casos curiosos sobre o polêmico uso do artefato. Muitos deles bem antigos. Conta-se que, nos anos 60, a espada foi proibida em Cruz. Em plena ditadura, quando a cidade já era considerada subversiva, um juiz tradicional proibiu a guerra.
“Isso é fato verídico e comprovado”, garante Janio de Catro. Apesar da proibição, o juiz passou na praça e viu a guerra de espada rolando solta. Foi então na delegacia pedir aos policiais para prenderem quem estava tocando. Ao chegar lá, os policiais estavam produzindo espadas. “De quem é essa espada?”, perguntou. “Essa daqui é da gente, mas aquela ali no canto é do comandante do destacamento”. O juiz viu que não tinha jeito e liberou a guerra.
“Pra você ver que essas coisas culturais não podem ser normatizadas com canetadas em gabinetes”. Mais recentemente, a espada foi novamente proibida. Mas todos os anos os espadeiros desafiam a lei. “Eu acho que deveria ser muito mais discutido. Fazemos um espadódromo? Eu discordo. Você vai fazer uma racionalização urbanístico arquitetônica pra uma manifestação de rua. Manifestação cultural lúdico-festiva-transgressiva de rua. Pra mim, tem que disciplinar, controlar mesmo. Quem tá tocando perto do posto de gasolina e do hospital, tem que prender porque é um baderneiro. Tem que disciplinar e preservar”.
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